segunda-feira, 7 de abril de 2014

FILME: «Noites de Circo» («Gycklarnas Afton») de Ingmar Bergman (1953)

Que tenha dado por isso, este que foi o décimo terceiro filme de Ingmar Bergman, nunca se chegou a estrear em Portugal, mas inicia-se logo de uma forma que lembra a cena emblemática de «O Sétimo Selo» com corpos em contraluz a subirem uma colina.
Logo veremos tratar-se de uma companhia de circo que, na viragem do século XIX para o século XX, se desloca de terra em terra para garantir o sustento de quem a integra. Mas o circo Alberti - é assim que se chama! - vai acumulando prejuízos e Albert Johansson, o seu diretor, já só pensa em abandoná-lo para regressar aos braços da esposa legítima e à vida burguesa, que ela conquistou ao estabelecer-se como lojista na sua cidade natal
Pelo cocheiro, que com ele conversa, temos o exemplo do que Bergman utilizará recorrentemente na sua filmografia: uma história incrustada na principal, aparentemente sem nenhuma relação com ela, mas reiterando-lhe o sentido. Vemos assim a vergonha por que passa o palhaço Frost, a quem troçam devido à traição da esposa, Alma, muito dada às atenções dos que integram o regimento militar estacionado por perto.
Trate-se de uma alegoria ou de uma história real, o que já está presente é o tema da vergonha e da humilhação. Que suscita uma das cenas mais memoráveis do filme: aquela em que, sem o conseguirmos ouvir, Frost grita o seu desesperado sofrimento.
Embora se trate de um filme ainda do primeiro período da obra de Bergman - que conhecerá  em breve o seu termo com «O Silêncio» - já aqui está a preocupação com o olhar dos outros, com a humilhação pública. Ou dito de outra forma, a impossibilidade de se viver só, mas ao mesmo tempo não se conseguir evitar o sofrimento de partilhar o curso dos dias com alguém. Agda parece ser a única a ter encontrado o equilíbrio para viver sozinha, a única forma de ter paz e liberdade. Mesmo que diga a Albert, que provavelmente não conseguirá viver para sempre sem voltar a conhecer outra relação amorosa. Sem que seja com ele, claro!
A diferença dos filmes deste período em relação aos que se lhes seguirão reside na sua vertente romântica, sentimental, muito diferente da secura e aspereza, que terão os títulos mais conhecidos e premiados do realizador. Mas, uns e outros, coincidirão nos rostos em grande plano, que exprimem o medo, a solidão, o mal estar, a dúvida.
Temos a humilhação decorrente da desigualdade social: veja-se a cena em que Alberti vai pedir o guarda-roupa emprestado ao teatro da sua cidade e é olhado com desprezo pelo respetivo diretor e seus atores, Embora todos se dediquem à atividade artística o prestígio dos que trabalham no teatro é completamente diferente dos que se arrastam de terra em terra. E estes últimos têm a plena noção da sua triste condição: também eles terão sonhado com a Arte com maiúscula, mas deixaram cair os seus sonhos em função do fraco talento ou da falta de sorte.
Existe igualmente a humilhação inerente à traição amorosa: porque Albert procura Agda, Anna, que tem sido a sua amante, decide vingar-se entregando-se a Franz, um ator cínico do teatro local. Um ano depois de ter interpretado o papel principal de «Mónica e o Desejo», Harriet Andersson volta a encontrar um papel à medida da sua sensualidade provocadora.
Estão lançados todos os dados para que o drama se desenvolva, porque personagens humilhados já então não escasseiam. Sentindo-se traída Anna entrega-se a Franz. O que permite vislumbrar vários tipos de respostas para o sofrimento: se o palhaço Frost superara a vergonha e reconduzira a mulher para o lar, Franz refugia-se no orgulho e Alberti ameaça matar ou matar-se.
Temos, então, o artista a constituir-se como aquele por quem se verbalizam as verdades face ao mundo de mentira, que o rodeiam. Mesmo que arriscando pagar um custo elevado por essa sinceridade.
Sobre o filme há, ainda, a salientar que é o primeiro em que se institui a dupla de Bergman com o diretor de fotografia de quase todos os seus filmes futuros: Sven Nyqvist. É ele quem consegue dar uma estética visual impressionante a uma história, que valoriza com a presença contínua da água - da praia, do rio, da chuva, das valetas - que constitui o espelho com que quase todos os personagens temem confrontar-se.



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