terça-feira, 31 de dezembro de 2013

FILME: «América anos 30» de Tim Robbins (1999)

Outono de 1936. Mussolini preparava-se para invadir a Abissínia, enquanto Hitler visitava a Exposição de Arte Degenerada. Nos Estados Unidos o Presidente Roosevelt estava a implementar as políticas do New Deal para dar trabalho a quem estava desempregado. Um dos programas federais abrangidos por tal estratégia era o WPA, um programa de apoio ao teatro, que tinha em Orson Welles um dos seus subsidiados.
O realizador de «Citizen Kane» diria, depois, ter sido essa a época em que os Estados Unidos mais próximos terão estado da criação de um Teatro Nacional.
Mas Tim Robbins - que chegou a alimentar a ambição de ser tão relevante para o cinema norte-americano, quanto aquele seu inspirador - vai igualmente buscar influência a outro dos realizadores, que mais admira (Robert Altman) para recriar o ambiente social e político dos anos 30 através dum argumento distribuído por uma dúzia de histórias paralelas, como num mosaico em que as personagens ora se cruzam, ora se afastam, algumas delas sem sequer darem pela existência das outras.
Se esse tipo de filme até consegue resultar, nomeadamente chegando aos óscares, como sucedeu com o «Crash» de Paul Haggis em 2004, carece de um talento inquestionável para evitar os escolhos da confusão e da dispersão. Ora é aqui que Tim Robbins falhará apesar de contar com um elenco superlativo.
As histórias dispersam-se por quatro eixos principais:
· a criação do mural para o Rockfeller Center pelo artista mexicano Diego Rivera;
· a preparação da estreia da peça «Craddle Wild Rock» no teatro Maxine Elliott;
· a convocação da coordenadora do WPA a uma antecessora da tenebrosa Comissão das Atividades Antiamericanas do senador McCarthy;
· e a decadência de um ventríloquo ferozmente anticomunista, mas com um boneco politicamente a ele totalmente oposto (e que bem vai Bill Murray neste papel!).
Descobrimos, assim, uma América em acelerada agudização da luta de classes, com os mais ricos a flirtarem com Mussolini e a reprimirem violentamente os sindicatos e as manifestações antifascistas, e os milhões de homens e mulheres ainda com a memória bem fresca da fome padecida durante os anos mais duros da Depressão, a exigirem uma distribuição mais justa das riquezas.
Temos assim John Turturro como ator da peça encenada por Orson Welles e a defender os princípios contra a promessa de apoio financeiro da sua família entusiasmada com a retórica do Duce. Temos John Cusack como um endinheirado Rockfeller, incapaz de compreender como foi possível ter Lenine ou Marx no mural encomendado a Rivera para o edifício construído exclusivamente para glorificar a sua fortuna. Temos Susan Sarandon como uma judia italiana apoiante de Mussolini e amiga de Rivera, não conseguindo libertar-se dessa contradição. Temos Emily Watson como uma sem abrigo, que consegue encontrar providencialmente emprego na peça, que o poder se encarregará de proibir por constituir um notório libelo anticapitalista. Ou Joan Cusack como a ingénua delatora das supostas atividades subversivas da organização onde era mera funcionária administrativa e se vê ostracizada pelos colegas e confrontada com os desempregados, que deveria ajudar e se veem doravante desapoiados. E ainda Hank Azaria, Ruben Blades, Cary Elwes, Cherry Jones, Vanessa Redgrave, Bob Balaban, Jack Black, Paul Giamatti, Barbara Sukowa em desempenhos igualmente relevantes.
Temos, pois, um filme com uma mensagem ideológica interessante - não faltando uma cena com o boneco do ventríloquo a cantar a Internacional, mas com um resultado final pouco convincente. E por ter sido um fracasso comercial, Tim Robbins poucas oportunidades voltou a ter para se mostrar um realizador à dimensão dos mestres aqui por ele homenageados.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

LIVRO: «Sauvage» de Nina Bouraoui

Eu acredito já termos talvez vivido as mesmas coisas com as mesmas pessoas e que a vida é uma roda a girar em torno dela própria. E que tudo volta, tudo recomeça. Até ao infinito. É como com as ideias: rodam incessantes e uma delas dá lugar a outra, que também noutras se desmultiplica.
Integrada na escola da ficção francesa, que leva os escritores a parecerem autobiografarem-se continuamente, Nina Bouraoui volta a revisitar o passado argelino neste seu décimo terceiro romance, que tem por protagonista e narradora uma jovem adolescente de 14 anos.
Alya, assim se chama ela, lamenta ter-se separado de Sami, o rapaz cujo amor a ajudara a superar o vazio dos seus anos infantis.
Estamos em 1981, e depois de umas férias em França na aldeia natal da mãe, os pais concluem pela impossibilidade de regressarem ao outro lado do Mediterrâneo.
A iminência da mudança já era pressentida em 1979, com a morte de Boumédiène e a acelerada islamização empreendida por Chadli Bendjedid: anunciava-se uma catástrofe, que não se adivinhava sob que forma surgiria. Pela tecnologia cada vez mais moderna e incompreensível? Pela opressiva religião? Por algo oriundo do espaço interestelar?  Mesmo à distância de uma década cresciam os sinais inquietantes da sangrenta guerra civil, que mancharia o já atormentado país do pai da escritora.
Alya vive a frustração de nem sequer ter conseguido despedir-se do cúmplice afetivo, sentindo uma inevitável culpabilidade. A Argélia convertera-se numa ainda mais perigosa prisão do que a por ela conhecida, quando passara a infância circunscrita ao reduto familiar, tendo como único espaço de liberdade a natureza selvagem em redor. Daí o título!
Passado um ano sobre o inexplicável desaparecimento de Sami, Alya procura algum conforto na escrita, como se ela lhe propiciasse a definição do seu espaço entre a infância e a idade adulta, entre o mundo dos mortos e a exaltação de se sentir viva.
É para que a memória de Sami não se perca, que escreve diariamente a história de ambos, reinventando o passado e fixando o presente, que é tempo de espera e de imaginação.
No fundo é a espera por um amor, que não regressará. E na esperança de encontrar um lugar no mundo complexo à sua volta, tão distante das planícies da Mitidja.
Pelo meio vão passando outros personagens secundários, mas que ajudam a compor o cenário em que  se move: a avó francesa dada aos esoterismos e vangloriando-se de ser capaz de comunicar com o invisível. O pai, inteligente e capaz de infundir um inquestionável respeito.
Na viagem interior ao passado temo-la de mão dada a Sami, quando, sentados à noite em pleno deserto, sentiam que, mais do que o amor um pelo outro, existia um sentimento profundo pelo mundo em si no que ele era feito de fusão entre a matéria e o espiritual.
No final, já em Argel, Alya reconhece a impossibilidade de rever Sami, mas também conclui ter sido exagerado o receio pelo fim de um mundo, que continua a rodar, a rodar, mesmo que não possibilite a reconquista de tudo quanto, entretanto, se perdeu...


POLÍTICA: O ainda surdo rufar dos tambores!

Quer o «Público», quer o «Expresso», têm dedicado particular atenção aos contrastes surgidos na sociedade portuguesa nestes últimos quarenta anos, ou seja entre o estertor do marcelismo e o mortiço crepúsculo de uma versão colaboracionista do impasse a que chegou o capitalismo financeiro internacional.
A revisita de todo esse intervalo histórico tem vários motivos de interesse e o menor não é o do estado de alma por que passaram os portugueses durante esse trajeto. Pode-se então constatar que jamais se atingira este nível de desesperança quanto à expectativa de se vir a viver num mundo melhor. Nem sequer no fim da longa noite do fascismo se chegara a este desânimo  de descrer em versões mesmo que mitigadas de utopia.
Mas, paradoxalmente, também nunca se viu tão poucos jovens a protestarem na rua contra este estado das coisas.
Há quarenta anos as Associações de Estudantes das escolas secundárias e das Universidades fervilhavam de vontade de rumar contra a corrente. Agora, o crato consegue mobilizar contra si os professores, mas merece a maior das indiferenças daqueles que, porém, já têm bilhete reservado nos voos para destinos mais ou menos longínquos, onde poderão ter a possibilidade de arranjarem algum emprego aqui negado.
É claro que subsiste a esperança de ver despertada essa juventude adormecida, apenas vislumbrada na que frequenta as organizações partidárias para se candidatarem a «boys» de «jobs» convenientemente distribuídos pelos seus tutores. Mas, quando descobrirem que o Estado minguado pelos seus próprios dirigentes partidários, já não serve de caminho certo para a ascensão na escala social, perderão os ardores arrivistas. Esperemos que, então, se somem aos demais e exijam um país aonde a redistribuição da riqueza não atinja as desigualdades gritantes do presente. E que esta abulia dê lugar ao entusiasmo contido de uma mudança iminente...


sábado, 28 de dezembro de 2013

POLÍTICA: furar o bloqueio do discurso dominante!

É assunto glosado reiteradamente neste blogue, mas a que nunca é demais voltar, pela sua importância na evolução da luta de classes durante o ano de 2014: como escreve Pacheco Pereira na crónica surgida no «Público» de hoje, o governo parte em vantagem quanto à difusão do discurso justificativo das suas malfeitorias, superando assim todas as críticas - por muito fundamentadas que se revelem - demonstrativas dos seus injustos danos económicos e sociais.
Bem podemos indignarmo-nos com a enormidade de um pires de lima a anunciar um «milagre económico» ou de um passos coelho a anunciar «ter criado cento e vinte mil empregos», que sobrarão muitos jornais, rádios, televisões e posts das redes sociais a repeti-lo até à exaustão.
Se podemos considerar que aquela indignação subsistirá numa minoria mais informada, existirão muitos inocentes, ansiosos por boas notícias que os livrem das suas presentes angústias, para se porem a acreditar no que os seus olhos e ouvidos liminarmente desmentem.
Trata-se de uma questão pouco abordada pelas esquerdas mas que continua a estar sempre na ordem do dia: como maximizar a eficiência de um discurso de agitação e propaganda?
É que o grande patronato e os senhores da troika têm continuamente altifalantes a multiplicarem as suas mensagens no espaço público. Ora, no meio de tal cacofonia, é fundamental que se insinue e ganhe impacto o discurso dos que andam, por agora, a serem ainda mais humilhados e ofendidos nos seus legítimos direitos...


ALHURES: A Trincheira da Morte em Bruges

«Le Boyau de la Mort» é um monumento, que será por certo muito visitado no próximo ano, quando se iniciarem as comemorações do centenário da 1º Grande Guerra Mundial, e que, a exemplo do conflito em causa, perdurarão por quatro anos.
Esta trincheira da morte está conservada a cerca de 45 quilómetros da cidade belga de Bruges e servirá para evocar as condições em que toda uma geração europeia - inclusivamente portuguesa - foi obrigada a servir de carne para canhão na disputa das grandes potências do continente pelo domínio dos mercados, das vias de comunicação e das reservas de matérias-primas.
São muitos os portugueses, que tiveram avôs ou bisavôs a combaterem na Flandres, já que os políticos da I República avançaram para essa guerra como forma de evitarem a perda das colónias em África (particularmente ambicionadas por ingleses e alemães) e retirarem algum ganho adicional enquanto componente das forças vencedoras.
O problema foi que - e isso verificou-se com o meu avô paterno! - quem de lá veio trouxe um ódio de morte a Afonso Costa e aos republicanos em geral. E uma devoção espacial por Gomes da Costa, que lideraria o golpe do 28 de maio de 1926, donde emergiria o salazarismo. Por isso nas trincheiras da Flandres começou a redigir-se a  declaração de óbito do regime implantado em 5 de outubro de 1910.


IDEIAS: os frutos são de todos e a terra de ninguém!

Através da definição da propriedade como direito natural, a Declaração de 1789 transforma a instituição social em trincheira de proteção da propriedade privada  e em fator determinante das desigualdades. Os que redigiram aquele texto consideraram, em essência, o sujeito como um proprietário de acordo com o que Hugo Grotius escrevera em 1625 no seu «Do Direito da Guerra e da Paz»:
Como as coisas se tornaram propriedades: tal não sucedeu por mero ato da vontade, porque os outros não podiam saber o que cada um pretendia fazer seu, e várias pessoas poderiam querer apropriar-se do mesmo objeto. Mas foi resultado de uma convenção, expressa por meio, por exemplo, de uma partilha, ou tácita por via da sua ocupação. Devemos, pois, presumir que a comunidade conseguiu aceitar a regra de cada um ser proprietário do que ocupasse ou do que se apossasse.
Se a propriedade individual é um fenómeno natural, quando falamos de contrato social estamos a cuidar do usufruto dessa propriedade.
O Direito, por via das leis e dos contratos, regulará os conflitos relacionados com a posse e a transmissão dos bens, assegurando a proteção dos proprietários.
Temos de convir que, aqui, a noção de «propriedade» tem de ser considerada no sentido lato. O sujeito é definido como proprietário da sua liberdade, vida ou habitação: para Grotius, o ser e o ter acabam por se confundir entre si. As qualidades são outras tantas propriedades quanto o são os bens. Daí que não seja abusivo pretender que a Declaração de 1789 participa, através do Direito, nessa sacralização do ter.
Ora, numa sociedade que reconhece ter explicitamente por objetivo o de permitir aos seres contemplarem-se conjuntamente com as suas riquezas, o que sucederá aos de tudo desapossados?
O debate ganha intensidade ao longo do século XVIII, quando se discute o luxo. Helvetius vai defender que ele poderá ser um fator perigoso de desigualdade, porque torna esta ainda mais evidente. Em «Do Espírito»  (1758), ele constata que o luxo não é danoso enquanto luxo, mas simplesmente por efeito de uma grande desproporção entre as riquezas dos cidadãos.
Voltaire, pelo contrário, irá defender o luxo enquanto motor do progresso social, por constituir uma espécie de vanguarda: um determinado objeto inicialmente acessível a uma minoria, acabará por o vir a ser a quase todos, permitindo a melhoria coletiva do conforto da sua existência.
Pelo contrário Rousseau defenderá, no seu «Discurso Sobre as Ciências e as Artes», que o luxo é um inútil gerador de desigualdades.
Para o autor do «Contrato Social» encorajar o luxo  implica apostar na frivolidade e na legitimidade do lucro individual e das suas marcas distintivas. Porque o luxo não é apenas um privilégio de poucos: é também a representação, a manifestação mais ostensiva da riqueza neles concentrada. É por isso, que na tradição de Catão, Rousseau reclame a implementação de «leis sumptuárias», que coartem os sinais exteriores de riqueza e de acumulação de bens.
No seu «Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens», ele faz coincidir a criação da sociedade civil com o ato de apropriação:
O primeiro que colocou uma cerca num terreno tratou de dizer “isto é meu”, encontrou gente suficientemente ingénua para acreditar ter sido ele o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e quanto horror não teriam sido poupados à humanidade, se tivesse surgido alguém que arrancasse as estacas e tapasse o fosso, gritando para os seus concidadãos: «Cuidem-se de ouvirem este impostor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra de ninguém!»


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

IDEIAS: quando é que as esquerdas começaram a estar em crise?

Neste blogue tenho emitido uma tese, que me parecia fazer algum sentido, de haver uma concomitância entre a crise das esquerdas europeias e a queda do muro de Berlim, muito por força da falta de um equilíbrio entre a ideia de capitalismo e a de uma certa forma utópica de comunismo, logo traduzida num ataque incessante das direitas contra as conquistas do Estado Social. Ainda recentemente, num texto sobre a relevância da recuperação do ideal marxista, eu utilizava tal tese como justificação para essa necessidade de regresso aos valores fundamentais herdados da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Numa dinâmica acelerada de imposição dos seus interesses de classe as direitas livraram-se, entretanto, das orientações democratas-cristãs e enveredaram por um neoliberalismo, que não as eximiu de, em muitos casos - e o passismo é disso um exemplo lapidar! - se revelarem particularmente estatistas sempre que lhes deu jeito.
Mas a leitura do texto de apresentação assinado por Mário Artur Machaqueiro para o livro O Fim da URSS - A Nova Rússia e a Crise das Esquerdas, agora editado pela Colibri, teve o condão de me fazer reequacionar aquele pressuposto. Porque, no livro em causa André Freire e outros investigadores propõem outra tese, que se me passa a afigurar mais pertinente: a origem da crise das esquerdas europeias terá de ser recuada para os anos 70, quando o capitalismo entrou numa lógica de financeirização, dissociando a corporalidade das mercadorias dos valores por que são  negociadas em Bolsa.
Terá sido a virtualização da economia real, que criou as condições para pôr em causa o sucesso das esquerdas, doravante incapazes de lidarem com essa transfiguração dos seus inimigos ideológicos. Pior ainda - e Blair ou Schröder são disso lamentáveis exemplos - procuraram encontrar terceiras vias aonde elas jamais poderiam fazer sentido.
A implosão da União Soviética e a queda do muro de Berlim têm explicação precisamente nessa impossibilidade de lidar com uma nova realidade em que o fluxo de capitais se sobrepôs ao das mercadorias.
Daí que seja pertinente prosseguir nesta linha de raciocínio para buscar as soluções de esquerda necessárias à superação deste ciclo histórico, que tem morte anunciada. Sobretudo, porque, um a um, vão caindo os mitos criados em torno dessa linha ideológica fanaticamente capitalista: nem a globalização aumentou a riqueza mundial, nem produziu menos desigualdades. Hoje até a Igreja Católica pelo seu principal representante vem apelar a uma outra forma de encarar a produção e a distribuição da riqueza. Condenando sem qualquer dúvida todos aqueles que se comportam como o ganancioso Gordon Gekko dos dois «Wall Street» assinados por Oliver Stone.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

FILME: «Outubro» de Sergei Eisenstein

Em tempos que já lá vão os filmes de Natal faziam acreditar na possibilidade de resgatar os sem abrigo da sua desesperança suicida  («Do Céu Caiu uma Estrela») ou no castigo divino para quem se guiava apenas pela ganância do dinheiro (Scrooge).
Mas quando se tem um governo, que só promete o caminho das pedras sem a expectativa de uma redenção para lá do arco-íris («O Feiticeiro de Oz») só podemos acreditar numa outra versão para filme de Natal: os russos de 1917 a invadirem o Palácio de Inverno («Outubro»).
Espoliados de quase tudo quanto os cravos de abril nos tinham trazido, é altura de pensar na forma como dar sentido à lógica dos dois passos para a frente, que se seguem àquele que demos à retaguarda...



POLÍTICA: infletir a tendência demográfica é desafio para a esquerda resolver!

Quem por estes dias andou pela zona das chegadas do aeroporto da Portela pôde assistir a muitos reencontros de jovens emigrantes com os familiares ali concentrados a esperá-los.
Depois de Portugal ter parecido um país promissor para uma geração, que se tornava na mais qualificada de quantas alguma vez nele existiu, a política deste governo troikeiro obrigou milhares de jovens e menos jovens a procurarem solução de emprego noutros países.
É esse o legado que passos coelho e paulo portas deixarão quando forem desapossados do pote a que, tão gananciosamente, se apossaram. Para exclusivo privilégio dos que os têm por marionetes dos seus interesses e para desconforto, senão mesmo desgraça, de quem vem arcando com os danos das malfeitorias, que têm cometido.
Se neste momento a economia portuguesa regrediu doze anos, estando a produzir ao nível de 2001, já há quem prediga que quase dois anos suplementares desta receita atirarão a produção nacional para os níveis dos anos 90.
Quem viveu essa época pode recordar como os anos da governação Guterres significaram o grande salto em frente de crescimento económico sustentável depois do marasmo suscitado por um cavaquismo apenas vocacionado para a política do betão e para os esquemas sórdidos de corrupção, apesar dos vultuosos apoios comunitários.
Como a oportunidade perdida nesses anos imediatamente subsequentes à adesão à então Comunidade Europeia não se voltarão a repetir, Portugal é deixado sem grandes argumentos por esta gentalha, que se julgou com méritos para liderar um país com tanta História. E a sangria de recursos humanos, que passos coelho provocou sob a forma de desafio para «se sair da zona de conforto», será uma das maiores dificuldades colocadas a quem se propuser regenerar a economia e devolver-lhe o crescimento virtuoso
É por isso que a tendência demográfica destes dois últimos anos será um dos desafios para que a esquerda deverá encontrar resposta: Portugal não poderá continuar a ser um país em que emigram mais cidadãos do que aqueles que nascem!


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

POLÍTICA: vivemos uma política de fantasia!

A época histórica em que maior discrepância existiu entre a mistificação criada pelo poder e a realidade vivida pelo comum dos cidadãos terá sido na Alemanha nazi no período imediatamente subsequente às eleições de 5 de março de 1933.
A desunião da maioritária esquerda alemã, com a impossibilidade de comunistas e sociais-democratas se entenderem, abriu espaço para a ascensão dos esbirros nazis à governação. Uma lição, que continua a ser estupidamente ignorada pelas esquerdas atuais...
Chegados ao poder logo os nazis puseram a sua máquina de propaganda a carburar a todo o vapor e conseguiram implementar a rápida proibição de todas as demais forças políticas, o encarceramento dos prisioneiros políticos em campos de concentração e o início da  segregação, e posterior eliminação, de todos quantos tivessem ascendência judia.
Ao avançar para a sua guerra expansionista, Hitler e os seus sequazes estavam convencidos da possibilidade de iniciarem a criação de um império capaz de durar mil anos.
O desiderato é conhecido: em doze anos quem muito subiu teve uma queda abrupta e brutal.
Olhando para a Europa de hoje constatamos uma discrepância igualmente abissal entre os representantes internos e externos da troika e a realidade social dos países onde ela se implantou ou ameaça implantar-se.
Todos os principais economistas reconhecem o desastre para que se caminha com a teimosia do «bandalho» alemão em prosseguir pela via austeritária mas continua a encontrar-se quem aceda a servir de altifalante a essa forma absurda de encarar a realidade dos indicadores relacionados com o desemprego e com a desigualdade na distribuição da riqueza e até a fazer o papel de miguel de vasconcelos dos interesses externos.
Mas quem acredita que quem agora está na mó de cima, assim continuará a estar? Quanto maior for a pressão imposta sobre quem está agora a sofrer, mais intensa será a ação contrária.
Depois, acusem de violência quem, em tempo útil, os terá avisado!


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

POLÍTICA: As personalidades do ano: José Sócrates, Jorge Bergoglio e Edward Snowden

Se tudo o que são medias por esse mundo fora já andam a realçar quem terão sido as personalidades mais marcantes do ano de 2013, eu permito-me a imitá-los aqui no modesto espaço do blogue, optando pelas três que podem ter lançado as bases para mudanças futuras.
A nível nacional a escolha vai inevitavelmente para JOSÉ SÓCRATES. O seu regresso, depois de uma ausência de dois anos a estudar em Paris, foi retumbante e veio atirar por terra as pretensões de uns quantos - a começar pelo atual diretor do «Expresso» - que o davam como morto politicamente.
Não se ajeitando ao papel que relvas julgava provável ao promover a criação de um espaço seu na RTP, Sócrates não desperdiçou a oportunidade para, semana após semana, zurzir certeiramente no governo e no inquilino de Belém que passaram a ter as orelhas a arder em todas as noites de domingo.
E mesmo quando se distancia das posições do líder socialista - como sucedeu esta semana, ao subscrever a crítica de António Costa ao acordo com o PSD e o CDS a respeito do IRC - fá-lo com a elegância, que faltou a outros, menos argutos e inteligentes, em tempos que já lá vão.
2013 terá representado para Sócrates o início de um processo de reafirmação das suas qualidades de liderança e de sentido estratégico, que tanta falta fazem ao país.
A nível internacional o realce vai para duas personalidades: o PAPA FRANCISCO e EDWARD SNOWDEN.
No primeiro caso até eu próprio me surpreenderia se, no início deste ano, imaginasse a possibilidade de vir a encarar muito positivamente o papel do Papa argentino. Até porque, enquanto ateu, já me dissociara grandemente dos sinais habitualmente oriundos do Vaticano por serem invariavelmente retrógrados.
Agora que a clara rejeição do fausto confirma ser mais do que uma estratégia de marketing e que se acumulam as provas em como terá sido responsável pela salvação de muitos compatriotas ameaçados pela junta fascista - contrariando as notícias iniciais quanto ao seu suposto colaboracionismo com os generais em causa! - pode-se encarar como uma lufada de ar fresco essa permanente crítica ao capitalismo selvagem, à abertura para as chamadas causas fraturantes e para o sentido de tolerância e de diálogo com quem pensa de forma diversa da sua.
Numa altura em que a direita troglodita a nível global continua a dar sinais de pretender a regressão em tantos avanços civilizacionais já conquistados - por exemplo nas questões do aborto ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo - Jorge Bergoglio revela estar muito mais avançado do que muitos dos que pretendem falar em nome da Igreja que ele volta a humanizar e a colocar ao lado dos mais pobres.
Quanto a Edward Snowden a sua importância ainda está por aclarar-se, mas já obrigou os serviços secretos, que nos espiam, a colocar-se na defensiva. Pelo menos de acordo com os recentes compromissos de Obama quanto à sua regulação e controlo. É que o direito à privacidade não pode ser contrariado em nome de uma luta antiterrorista, que deve ser ganha por via política, mais do que policial. Cada vez mais reconhecido como herói, Snowden personifica aquele tipo de pessoa capaz de pôr em risco a vida e o conforto em nome de princípios, que deveriam ser universalmente defendidos por todos.


domingo, 22 de dezembro de 2013

POLÍTICA: a entrevista a Augusto Santos Silva no «Público»

A entrevista que Augusto Santos Silva deu a Manuel Carvalho na edição dominical do «Público» reitera a postura institucional do antigo ministro socialista, que explica a sua antipatia por algumas manifestações e contestações menos padronizáveis pela sua visão de civismo, e a ausência de um discurso crítico em relação a António José Seguro. Mas vale, sobretudo, por trazer novamente à memória o entusiasmo com que o PSD acolheu a vinda da troika e a paternidade assumida por catroga a respeito do que hoje o ainda primeiro-ministro como a «calibração» do Programa contido no Memorando.
Quando passos coelho ou um qualquer dos seus altifalantes procura imputar as culpas para José Sócrates está a mentir com todos os dentes, porque entre a vontade de limitação dos danos dos socialistas e a assumpção de equivalência entre aquele Programa e o do PSD às legislativas vai uma enorme diferença.
E, passados três anos, qual será o resultado? Draghi ou o líder da troika disseram-no esta semana: um novo resgate ou, no mínimo, um programa cautelar. Apesar dos 300 mil portugueses, que perderam entretanto o seu emprego ou os mais de 100 mil jovens, que zarpam anualmente do país, voltámos ao cenário de há dois anos e meio atrás.
Por isso mesmo, e apesar de não confiar na possibilidade de cavaco o propiciar, Augusto Santos Silva consideraria imprescindível a posse de um novo governo liderado pelo Partido Socialista para negociar essas novas condições de apoio exterior. Onde não se pode concordar com o entrevistado é com a possibilidade de para esse Governo se contar com gente como pires de lima, os macedos ou até assunção cristas… mesmo associando-lhe nomes do 3D!
Constituindo um dos mais interessantes comentadores políticos do momento, desejar-se-ia que Augusto Santos Silva fosse … um pouco mais de esquerda!


POLÍTICA: O que Seguro quer é uma “evolução na continuidade”?

A decisão do Tribunal Constitucional sobre os cortes nas pensões dos antigos funcionários públicos suscitou uma avalanche de comentários durante estes últimos dois dias, que chegou a dificultar a objetividade com que se devem encarar os tempos mais próximos à luz deste acontecimento.
 Bem pode passos coelho teimar na possibilidade de uma redução do valor das pensões que os juízes foram bem claros na definição da jurisprudência de consolidação da relação de confiança entre o Estado e o cidadão.
Só a cegueira ideológica do primeiro-ministro e dos brunos maçãs que o assessoram poderá fazê-lo pensar na possibilidade de ainda existir alguma viabilidade em prosseguir por esta via por muito que recorra a artilharia pesada como a recentemente convocada para pressionar os juízes do Palácio Ratton.
Quais draghi, barrosos, dijsselbloems ou mesmo merkels! Ao contrário do que portas invoca, o Tribunal Constitucional rejeita a tese do protetorado e reafirma a independência efetiva do país. E não deixará de replicar este primado da nossa Constituição sobre os contumazes esforços deste governo para a violar.
Se nesta altura o Partido Socialista tivesse conseguido afirmar-se como a alternativa incontornável  a toda esta política desastrosa, dificilmente passos coelho sobreviveria a mais esta derrota por muito que cavaco lhe amparasse o tombo.
Infelizmente a atual direção continua sem atinar com a estratégia adequada para apressar o fim deste ciclo de direita. Como se viu com o acordo desta semana sobre a revisão do IRC.
O que se viu foi uma redução imediata dos impostos pagos pelos patrões a troco de uma vaga promessa de revisão em baixa do IVA e do IRS num qualquer dia de são nunca à tarde.
O sinal dado aos eleitores foi evidente: em vez de uma política de rutura com todo este estado de coisas, o que Seguro garante é uma evolução na continuidade a lembrar o marcelo pós-salazarista.
Daí que tenha de estar de acordo com Pacheco Pereira quando, no «Público», demonstra como do Rato saem favores incompreensíveis para os que beneficiam com o atual estado de coisas:
Numa altura em que a campanha eleitoral para as europeias e a, mais distante, das legislativas são já um elemento central das preocupações partidárias do PSD e do CDS, o PS deu-lhes um importante trunfo político, e um sinal de que não confia nas suas próprias forças para ganhar as eleições e muito menos governar sozinho.
Um acordo PS-PSD feito pela fraqueza e assente na continuidade da política atual prenuncia apenas que, seja o PS, seja o PSD, a governarem em 2015, cada um procurará no outro um seu aliado natural, não para uma política de reformas, mas para garantir a política que interessa ao sector financeiro, que capturou de há muito a decisão política em Portugal.
O PS de Seguro mostrou que não é confiável como partido da oposição e que ou não percebe o sentido de fundo da atual política de “ajustamento”, de que este abaixamento do IRC é um mero epifenómeno, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer ser parte dela.
Se ainda há dias o Carlos do Carmo lamentava a nossa desdita em termos sido condenados a suportar cavaco durante tantos anos desde o 25 de abril, os socialistas só podem lamentar que nesta fase da nossa História, o líder da Oposição seja alguém cujo sentido de estratégia se pareça ter esgotado com todo o esforço desenvolvido para ascender ao patamar da sua incompetência!


sábado, 21 de dezembro de 2013

MÚSICA: Buddy Bolden, o primeiro jazzman

No último quartel do século XIX, os músicos de Nova Orleães começaram a ouvir blues à medida que um fluxo constante de refugiados do delta do Mississípi começou a desembarcar  na cidade ao pretenderem escapulir-se do sistema de semiescravatura conhecido como “Jim Crow”. Para essas pessoas o trabalho como estivadores no porto da cidade prometia uma vida melhor do que a até então conhecida nos latifúndios de cana-de-açúcar e de algodão.
Com as bagagens, que traziam, também chegava o blues como expressão de uma situação que desafiava a sua capacidade de compreensão.
Desde que a Guerra Civil terminara os negros andavam à procura de um novo padrão artístico, capaz de os libertar do estilo adotado e já muito desvirtuado pelos menestréis.
O blues foi o estilo musical, que emergiu dessa procura. Versátil e elástico não deixava de revelar simplicidade, o que fez dele a incontornável expressão musical americana.
Normalmente baseia-se em três acordes sujeitos a um arranjo em sequências conhecidas como estribilhos e que permitem um número infindável de variações. Trata-se de um estilo, que para ser bem tocado, não necessita apenas de boa técnica: tão importante quanto ela, há que ter uma sensibilidade muito especial. O músico pode criar, então, um estilo básico a partir do qual extrai todo o tipo de som. O blues era a versão profana dos hinos dos negros da Igreja Batista, com muitas chamadas e respostas, gritos, lamentos, exortações e improvisações.
Há uma grande diferença entre ter o espírito do blues e tocar o blues. Tocá-lo é uma forma de aliviar o coração. Talvez as letras fossem tristes, mas a melodia evocava tempos de alegria. Por isso essa música afastava a tristeza do coração.
Em Nova Orleães os músicos descobriram uma forma de aprofundar a mensagem do blues quando passaram a recorrer aos seus trompetes. Anteriormente os músicos tocavam cornetas e outros instrumentos militares, que tinham sobrevivido à Guerra Civil.  Então, em vez de respeitarem os cânones do estilo militar  passaram a imitar as melodias entoadas nas igrejas com notas, que vibravam no final. É assim que a música adota uma outra dimensão, ganhando em profundidade e em sinergia dos opostos.
As pessoas começaram a apreciar os hinos religiosos a par da melodia profana dos blues. E os músicos que conseguiam entender essas duas possibilidades e passaram a tocá-las lado a lado com as suas cornetas, como anjos e demónios ao mesmo tempo, eram admirados como os melhores.
No século XX o blues tornar-se-ia na fonte que alimentaria todas as correntes da música americana, incluindo o jazz.
Buddy Bolden foi um dos primeiros músicos de jazz. Talentoso trompetista, era um negro batista de pele muito escura, que imprimia forte personalidade à música que compunha. Nascido em 1877, só se lhe conhece uma fotografia e pouco se sabe da sua biografia. Mas, logo desde o início do seu percurso artístico, mostrava-se diferente de todos os outros corneteiros e trompetistas. Era mais eloquente, ousado e inovador, e estava sempre ansioso por encantar e surpreender os espectadores com a riqueza dos seus próprios temas.
Foi ele o inventor da batida conhecida como “big four”, ou pelo menos é o que reza a lenda. Essa inovação assentava no realce da quarta batida, quando o tambor  e os pratos entravam juntos e foi assim que se começou a emancipar a cadência jazzística com todo o seu potencial de improvisações.
Em 1906, Buddy Bolden já se tinha tornado no músico negro mais conhecido em Nova Orleães e era aclamado como o mais talentoso de entre todos pelas crianças que se amontoavam à porta de sua casa todas as manhãs só para ouvi-lo ensaiar.
Ele era particularmente admirado pela comunidade negra de Storyville, um dos bairros mais pobres da cidade onde se testemunhava uma permissividade como não existia em nenhum outro lugar na América. Um verdadeiro pólo de uma sexualidade exuberante sem travões puritanos.
O jazz torna-se na música do real abordando as depravações testemunhadas pelos próprios músicos. Era isso que dava sumo à música e o que os seus apreciadores exigiam.
O auge do percurso de Bolden coincidiu com os anos dourados de Storyville, quando toda a cidade convergia para ali a ver o que ali se passava.  Passara a ser o bairro mais famoso da cidade.
Mas Bolden começou a pagar o preço dessa vida boémia: começou a beber demais e a faltar aos espetáculos., queixando-se de insuportáveis enxaquecas. Quando começou a falar sozinho e a arranjar zaragatas com os músicos das bandas com que tocava - temendo ver nas inovações deles a capacidade para ofuscar as suas  -  já pouco era possível fazer para o livrar do fim anunciado. A mãe bem lhe tentou aplacar os medos, mas sem resultado. No auge de uma nova crise foi ela quem chamou a polícia., temendo pela sua vida ou pela do filho.
Buddy Bolden, o homem que liderara a primeira banda de jazz da História , não voltaria a tocar em público, passando o resto da vida internado no manicómio de Jackson, no Louisiana.