segunda-feira, 30 de setembro de 2013

POLÍTICA: ainda a ressacar!

A grande questão que se punha no fim da noite de ontem era esta: e agora? Irá mudar alguma coisa?
Claro que surgiram logo uns quantos a afiançarem nada mudar, desde passos coelho a garantir que continuará a escavar ainda mais o buraco aberto desde o seu assalto ao pote, até à generalidade dos comentadores ouvidos na televisão. E o próprio cavaco silva, ainda as eleições estavam a decorrer, prometia mais do mesmo, desvalorizando o exemplo de António Guterres em 2001 e dissociando o carácter local das escolhas das que pudessem ter significado nacional.
Nada, pois, que nos leve a espantar. Também Galileu deu com umas quantas mentes cristalizadas, que apostavam na imutabilidade dos objetos, quando ele já sabia de antemão que eles moviam-se sem parar.
A chatice para passos e para cavaco é que, não só a realidade está mesmo a mudar, mas ainda por cima em sentido contrário ao dos seus desejos.
Gostaríamos que ela fosse mais acelerada na sua transformação? Claro que sim! Mas ela dá mostra de tendências, que não podemos ignorar.
A primeira é a de uma resiliência do ideal comunista tal qual o divulga o PCP. O avanço eleitoral do partido de Jerónimo de Sousa até nem foi tão expressivo, quanto o do aumento das autarquias em seu poder - mantém-se num patamar entre os 10 e os 12%, que o torna peão importante na evolução dos acontecimentos, mas diminuída na sua influência pela limitação progressiva do impacto organizativo do seu aparelho sindical. Infelizmente, e até com a ilusão propiciada por estes resultados eleitorais, os comunistas tenderão a entrincheirar-se cada vez mais nos seus bastiões sem se revelarem úteis para uma plataforma de esquerda capaz de promover uma transformação profunda na sociedade portuguesa.
A segunda está na grupuscolização dos partidos mais pequenos: quer o Bloco de Esquerda, quer o CDS denotam grandes dificuldades em se afirmarem num futuro aonde se tornará provável a federalização de tendências à esquerda e à direita em grandes blocos políticos. Mesmo ganhando o prémio de discurso mais ridículo da noite (quem disse que o ridículo mata enganou-se ou já estaríamos hoje a acompanhar o seu féretro!) paulo portas terá muitas dificuldades em evitar nas próximas legislativas o destino dado pelos eleitores alemães a outro FDP.
Quanto a João Semedo e Catarina Martins, estarão a comprovar a impossibilidade de infletir a curva decadente aberta por Louçã com a sua participação no chumbo do PEC IV.
Noutro momento histórico o Partido Socialista soube identificar a importância de uma outra formação política igualmente minúscula em reação à qualidade dos seus membros e integrou no seu seio os antigos militantes do MES, entre os quais se contaram Jorge Sampaio, Ferro Rodrigues e outros quadros políticos, que se revelaram grandes dirigentes seus. Houvesse agora a mesma abertura então demonstrada por Mário Soares e Jorge Sampaio e talvez o PS conseguisse enriquecer-se com bloquistas de excelente qualidade e cujas ideias tanta falta fazem a um partido tão delas minguado.
A terceira tendência tem a ver com o aparente crescimento de um discurso antipartidos como o enunciado por Rui Moreira, mas outros exemplos idos - de que o partido eanista foi lapidar concretização - demonstraram a fatuidade de propostas supostamente regeneradoras, que acabam por fenecer com surpreendente rapidez.
E ainda salientemos a quarta tendência representada pelos desastres eleitorais do PS em Braga e em Matosinhos e o do PSD na Madeira, no Porto e em Lisboa: na sua insuspeitada sageza, os eleitores têm a frequente lucidez de destroçar quem entende o poder como coisa sua e não propriamente resultante da delegação de confiança de um coletivo tão capaz de emotividade, quanto de racionalidade. Mesmo que o caso específico de Oeiras tenda a cumprir o ditado de toda a regra contar com a sua exceção.
Quem disse que, depois de ontem, ficou tudo na mesma?


IDEIAS: Qual é o Valor dos nossos valores?

É comum ouvir o discurso  da perda de valores em qualquer época em que vivamos, Existe sempre uma nostalgia de algo, que já não é como se imaginava que foi, e está a ser transformado pela imprevisibilidade inquietante do que se teme vir a ser.
Essa sensação de degradação dos valores é uma característica transversal a todas as épocas e culturas. Desde Platão tem-se a sensação de haver uma única coisa que não se perde: precisamente esse sentimento de perda.
Haverá então algum sentido em falar de decadência, quando cada época é tida como padecendo-a em relação a uma outra, anterior, quando se teve igualmente a mesma sensação em relação à precedente? Como se poderá medir essa decadência?
A resposta mais óbvia tem a ver com a evolução dos costumes, em que se abandonam conceitos anteriormente tidos como sólidos, virtudes educativas, que se veem postas em causa, subestimação do respeito pelos mais velhos em quem se deixa de reconhecer uma sabedoria a ter em conta.
A decadência acaba por ser uma espécie de juízo moral, com uma mistura de tristeza e de rancor, de quem já não se conforma com a realidade em que está circunscrito.
Mas se muitos filósofos se interrogam sobre os nossos valores, Nietzsche conseguiu maior argúcia ao questionar-se: qual é o valor dos nossos valores? No prefácio ao seu ensaio «A Geneologia da Moral»  o filósofo alemão considera imprescindível alterar a nossa forma de pensar a questão dos valores, já que eles são tão variados e só ganham em serem comparados.
Em 2002 a prancha de Andy Warhol  - «Fifteen One Dollar Bills» - com notas de um dólar foi vendida na Christie’s por 450 mil dólares e em 2009 na Sotheby’s por 950 mil dólares, o que para a questão da discussão do valor traz uma conclusão paradoxal: o que só tem o seu preço tem menos valor do que aquilo que representa. Porque, na realidade, o valor das notas de dólar representadas por Warhol é uma ínfima parcela do que passam a ter enquanto obra de arte reconhecida enquanto tal.
O falso pode, assim, ter um valor bastante superior ao que  é verdadeiro. A aparência pode ter maior valor do que a verdade. Questionando-nos na sua aparente superficialidade, Warhol demonstra a possibilidade de se ser superficial na profundidade do que nos sugere.
Mas este exemplo coloca outra questão interessante: qual a distinção a fazer entre o valor e o preço? Kant responde a essa questão considerando que tem valor verdadeiramente aquilo que está para além do preço.
Outra perspetiva para definir o preço é tratar-se de uma quantidade para definir uma troca. E é nesse sentido que um valor como a verdade não tem preço e corresponde ao conceito kantiano. Trata-se de um valor absoluto, quase divino.
Em Nietzsche a incompatibilidade com a ideia de Democracia - que justificaria a sua errónea identificação com o nazismo -  resulta do nivelamento de direitos na organização social por quem, pelos seus méritos e talentos, tem de ser desigual. E daí a importância dada por ele a uma hierarquia de valores e de pessoas dentro de uma sociedade.
Mas esse preconceito nietzschiano encontra um contraponto interessante no romance «Moby Dick» de Herman Melville, aonde as diferenças de valores entre Ismael e o canibal Queequeg, não impede uma amizade  testada por situações extremas. Na sua sageza o romance é uma das grandes obras antirracistas, que apela à tolerância e à prudência no julgamento alheio em função de valores que tendemos a generalizar como universais.
(texto resultante de uma conversa de Raphaël Enthoven com Patrick Wotling em «Philosophie» no canal ARTE)


POLÍTICA: na ressaca de vitórias de dimensão variável!

Concluída a noite eleitoral quase existe unanimidade em todos os comentadores televisivos quanto à colossal derrota de passos coelho e de alberto joão jardim, à pífia vitória de Seguro e ao sucesso estrondoso de António Costa.
Terão sido resultados à medida dos meus desejos? Claro que não! Depois de tudo quanto o (des)governo tem feito, os resultados nacionais deveriam ter-se assemelhado bem mais aos de Lisboa assim tivesse o Partido Socialista conseguido convencer os eleitores das capacidades superlativas do seu líder. A perda de Braga, da Guarda, de Beja, de Évora ou, sobretudo de Matosinhos, demonstrou sobejamente as já pressentidas limitações estratégicas de Seguro e dos seus mais próximos colaboradores.
Dirão os que mantém a ilusão em tão frágil liderança, que houve Gaia, Sintra, Funchal, Coimbra ou Vila Real, mas o demérito dos perdedores não significa propriamente uma valia efetiva de quem ganhou!
Corremos o risco de chegarmos às legislativas e termos Seguro como primeiro-ministro durante uns meses e nova conjugação da direita com o PCP e com o BE precipitar o Partido Socialista para nova travessia no deserto. Com uma dificuldade acrescida: quando Seguro sucedeu a Sócrates ainda tinha de herança um projeto visionário de crescimento e de modernização do país, que fazia todo o sentido. Com a atual liderança o vazio de ideias chega a ser tão confrangedor, que se desconhece de facto quais as respostas fundamentadas a dar a todas as questões relacionadas com a prática governativa neste contexto de crise!
Se até nas empresas qualquer gestor sabe qual a importância do capital humano e da sua identificação com a Missão e com a Visão para que devem ser motivados, questiona-se: quando saberemos as que o PS propõe?


domingo, 29 de setembro de 2013

FOTOGRAFIA: Sebastião Salgado e o nascimento do mundo

«Genesis» é o projeto fotográfico mais ambicioso alguma vez concretizado e constitui uma magnífica homenagem à beleza do nosso planeta.
Trata-se de uma verdadeira carta de amor ao planeta, convidando-nos para a beleza dos lugares quase virgens de intervenção humana.
Durante oito anos o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado percorreu o globo em busca de paisagens intocadas e de povos ainda escassamente contaminados pela cultura ocidental.
Cada uma das fotografias, que captou, é um apelo lançado à Humanidade para que deixe de explorar o planeta e proteja os povos indígenas.
Salgado sempre se assumiu como um militante. Em tempos documentou as terríveis condições de exploração nas minas de ouro do Brasil, as vagas mundiais de refugiados, as guerras e as destruições.
Mais recentemente, e em colaboração com a UNICEF e com a Amnistia Internacional, criou o Instituto Terra destinado a promover ações de preservação da floresta tropical.
Trabalhando exclusivamente a preto-e-branco, Salgado consegue impressionar pela sua diversificada paleta de cinzentos. Aos 69 anos ele é reconhecido como um dos principais fotógrafos mundiais, tendo integrado a mítica Agência Magnum antes de criar a sua própria sociedade: Amazonas Images.
Para o projeto «Genesis» Salgado foi da Antártica aos desertos africanos, percorrendo mais de cem países para fotografar paisagens, homens e animais.
De entre o milhar de fotografias, que captou, escolheu as suas preferidas para integrarem uma exposição itinerante, que está a ser apresentada em diversos países. E a Taschen acaba de publicar um álbum com cerca de 500 dessas fotografias e que já é considerada a mais relevante de quantos títulos Salgado já publicou.

LITERATURA: Bruno Morchio e Génova enquanto personagem

O romance policial italiano costumava chegar aos nossos escaparates com alguma frequência, quando o género merecia coleções a ele inteiramente dedicadas. O que deixou de acontecer e explica o desconhecimento que Bruno Morchio suscita nos portugueses fascinados por esse tipo de literatura.
Nascido em 1954, em Génova, Morchio começou por ser psicólogo e psicoterapeuta, dedicando-se à escrita nas horas livres.
Os primeiros romances, «Maccaia» e «La crêuza degli ulivi» penaram para encontrar editor disposto a integrá-los nos seus catálogos. Mas, em 2000, uma pequena editora aposta em «Bacci Pagano. Una storia da carruggi»  e o sucesso é imediato e inesperado, obrigando a sucessivas reedições. E à publicação dos romances anteriores.
O protagonista é um detetive genovês, irónico e desiludido, que aprecia ouvir Mozart, o bom vinho e a boa comida. No entanto, divide esse protagonismo com a cidade em si, os seus prédios em ruínas e uma população onde predominam os artesãos, os reformados, os imigrantes e as prostitutas. A história tece-se em torno da investigação de Baccio Pagano a uma guerra comercial e de lavagem de dinheiro, que coincide com o pedido de um velho amigo para que descubra quem lhe roubou uma espingarda antes da visita do primeiro-ministro à cidade. É que teme vê-la utilizada no atentado em preparação contra tal governante.
«Maccaia» começa com a descoberta do corpo de um reformado nos arredores da cidade, meio devorado por um lobo. Dois anos antes ele subscrevera um vultuoso seguro de vida tendo por única beneficiária a sua jovem esposa. Contratado pela companhia de seguros, Bacci Pagano vai-se deixando guiar pelos seus preconceitos e pelas aparências em vez de se cingir às evidências objetivas.
Em «Con la morte non si trata» (2006) Pagano vai até à Sardenha com a sua Vespa PX200 para procurar o filho de um prisioneiro, que se recusara denunciar os cúmplices apesar de eles terem dividido entre si o produto do roubo. Para o detetive a investigação poderá propiciar-lhe umas férias merecidas à beira-mar. Ou dar-lhe o ensejo de reencontrar a filha, a quem não vê desde a separação da ex-mulher. Ou ainda pô-lo em sérios perigos como de costume…
Em «Le cose che non ti ho detto» (2007) , Pagano sente tentações de se escusar ao pedido de Mara, que tão importante fora no seu passado, e agora lhe pede ajuda para o Gigante, ou seja o psicanalista Nicholas Ingroia. É que já o conhecera vinte anos antes, quando investigara a morte de um seu paciente na Tailândia. Entre o passado e o presente, desde o Extremo Oriente até às ruas estreitinha de Génova, Pagano tem de mostrar a sua tenacidade num caso em que o ódio e o desespero contrabalançam a inteligência e a razão, quando se trata de desvendar o que é verdadeiro.
Desde então, Morchio tem publicado sucessivos títulos, com o mais recente, «Il profumo delle bugie» (2012) a dissociar-se do género, optando por um estilo divertido e quase grotesco para descrever o ambiente em que vive uma família abastada em vésperas do Natal. Os Aste são, de facto, uma das principais linhagens de Génova não só pela riqueza acumulada, mas sobretudo pelo seu conúbio com o poder político. Edward, o velho patriarca, domina a estirpe, muito embora esteja desavindo com os filhos, preferindo-lhes os sobrinhos.  O que dá espaço de manobra para que as mulheres procurem encontrar os pontos de equilíbrio.
Pelos exemplos aqui abordados dá para perceber que Morchia merecia que dispuséssemos dos seus romances em traduções para a língua portuguesa.







BANDA SONORA: Orchestra Bailam, "A mae moae"



A Orquestra Bailam foi fundada em 1989 para concretizar um projeto acústico influenciado pela música Klezmer, grega, turca e dos Balcãs, exibindo-se em espetáculos mexidos e divertidos, homenageando ao mesmo tempo as pequenas orquestras típicas das margens mediterrânicas.

FOTOGRAFIA: Anna Positano e a memória dos lugares

Nos últimos anos Génova perdeu 1/4 da sua população de 800 mil habitantes. A maioria dos que partiram foram os operários metalúrgicos, condenados ao desemprego pelo encerramento das empresas onde trabalhavam. Mas muitos jovens também optaram por partir ao verem minguadas as possibilidades de encontrarem perspetivas de sucesso naquela que foi outrora tida como uma cidade stupenda.
A arquiteta e fotógrafa Anna Positano tenta resistir à tentação de partir, entretendo-se a captar em imagens essa hemorragia. Sempre confrontada com o conservadorismo de uma cidade, que remete a arte contemporânea para a quase clandestinidade, ela vai formulando e concretizando projetos fotográficos, que já começam a ser reconhecidos internacionalmente-
Um dos seus projetos mais interessantes intitula-se «Casa: uma arqueologia pessoal» (2011) em que procura associar, lugares, memórias e objetos. Daí ter procurado espaços de transição, que tivessem deixado de ser o que eram e estavam na iminência de se converterem em algo completamente diferente. Como aconteceu com a residência de um inquilino, quase centenário, que ali habitara e permite a Anna Positano a concretização de um conhecido conceito de Sartre para quem as coisas são a extensão do nosso corpo, possibilitando a sua recordação. A visita a essa casa constituíu, assim, uma espécie de prospeção à vida privada dessa pessoa.
Num trabalho mais recente, «Right Here» (2013), Anna Positano explora lugares através das memórias dos seus cidadãos. Concretizado em Clavesana (Itália) e em Adis-Abeba (Etiópia) durante duas residências da artista, ela pediu a algumas pessoas para esboçarem os seus percursos e mostrarem-lhos de acordo com algumas das suas experiências, relacionando lugares e memórias. Trata-se de um projeto apostado em criar uma perceção diferente dos lugares através da interligação entre as biografias e a geografia, concentrando-se em espaços quotidianos e negligenciados, quase “invisíveis” enquanto se percorrem...


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

LITERATURA: «O Homem em Queda» e a imprevisibilidade como modo de vida

No momento em que vi o segundo avião dirigir-se para a segunda torre do World Trade Center, concluí tratar-se de algo muito distinto do acidente, que até então servia de explicação para as imagens surpreendentes transmitidas a partir de Nova Iorque. E soube que o mundo iria mudar bastante a partir de então, a começar pela perda da inocente sensação de vivermos seguros em sociedades de abundância e distantes dos cenários de miséria do Terceiro Mundo, que tenderíamos a considerar mais propícios para as tragédias acidentais ou provocadas.
«O Homem em Queda» de Don DeLillo aborda essa sensação de estranheza de, ora se estar confiante e tranquilo num mundo previsível e abastado, ora se ver mergulhado na maior das inseguranças depois de se sobreviver a uma catástrofe suscitada pela mais irracional das explicações. Caleidoscópico, como nos habituámos a constatar nos seus romances mais conhecidos, este romance constitui uma estimulante reflexão sobre a precariedade das certezas, quando tudo à nossa volta tende para a mais descontrolada das volubilidades.
Através de Keith passamos pelas várias fases na vida de um sobrevivente desse histórico 11 de setembro: a reação hipnótica de fuga pelas escadas de emergência, acompanhando outros homens e mulheres em estado de choque, mas impelidos para a salvação pelas apinhadas escadas de emergência. A confusão gerada pela ascensão atabalhoada dos bombeiros e do pessoal da manutenção, que não se imaginavam a percorrer o breve hiato entre a vida e a morte. A caminhada pelas ruas mergulhadas na escuridão pelas cinzas, que parecem apossar-se de um apreciável diâmetro em torno do que virá a ser o Ground Zero. A consciência de gente a chorar, a correr, a ficar estática, a caminhar em sentido contrário como que atraída por incrível vórtice. Tanto mais que começam a precipitar-se corpos a partir dos andares superiores, aqueles que tinham o acesso cortado para a salvação pelos incêndios resultantes dos embates dos aviões. O abrigo encontrado no sítio de onde se julgara ter saído para sempre, em rutura de afetos, e que constitui afinal a única boia de salvação a que se agarrar. As semanas de estupefação em que tudo parece instável, quer nos afetos, quer nas direções a tomar para devolver alguma sensação de normalidade ao que se transformara numa sucessão de dias de indesejada excecionalidade.
Mas o livro vai para além desse personagem, porque acompanha igualmente o estado de alma de um dos terroristas do mesmo comando de Mohamed Atta, desde os treinos na escola de aviação na Florida até ao derradeiro voo para a morte. Ou as inseguranças de Lianne, a ex-mulher de Keith, que o recebera de volta sem lhe atirar à cara todo o sofrimento por uma rutura cuja iniciativa se devera exclusivamente a ele, e inquietando-se com a evolução para a senilidade definitiva de alguns dos pacientes de alzheimer com quem trabalhava no seu curso de escrita criativa. Como se essa forma de esquecimento refletisse o alheamento de quantos tinham decidido esquecer o terror daquelas horas, adotando comportamentos mais ditados pelas rotinas do que pelos pensamentos.
Outros personagens nem sequer têm o nome a identifica-los, como é o caso do performer, que suscita reações contraditórias com as suas acrobacias arriscadas pelas quais procura recriar o efeito visual dos que se haviam precipitado das Torres Gémeas antes delas ruírem.
E que a catarse de Keith signifique a transição do seu anterior ofício convencional e previsível para a condição de jogador profissional de poker dependente da aleatoriedade das cartas, condiz bem com um romance sobre a passagem de um mundo mais ou menos cristalizado num conjunto restrito de dogmas  para outro mais dependente das muitas variáveis, que ninguém parece verdadeiramente controlar...


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

POLÍTICA: até o Financial Times subscreve as teses do Congresso das Alternativas

A entrevista de Wolfgang Münchau ao «i» de sábado transato foi praticamente ignorada, mas é bem elucidativa de como até um dos principais colunistas do «Financial Times» assume posições que, em Portugal, teriam pleno cabimento no Congresso das Alternativas.
Para ele o segundo resgate não constituirá a panaceia em que alguns apostam uma eventual porta de saída: um resgate não é mais do que um crédito, não reduz a dívida, a única coisa que faz é adiar o problema.
Daí que Münchau considere essencial a redução dessa dívida, mediante um perdão parcial por parte dos credores: a primeira coisa que a zona euro tem de fazer é reconhecer que uma parte da dívida tem de ser eliminada. E isso requer um perdão parcial e a reestruturação da dívida.
Nada de muito diferente do que vozes avisadas como as de Louçã ou de João Galamba vêm propondo.
E Münchau  também é muito taxativo quanto à forte probabilidade de saída do euro, pressionada por cidadãos fartos de verem paliativos aplicados a uma realidade carecedora de solução bem mais radical: Não defendo que Portugal deve abandonar o euro, o que defendo é que deve considerar muito bem essa hipótese. O governo português tem de decidir se o país deve falir dentro do euro ou fora do euro.
Porque essa bancarrota parece inevitável Münchau considera pouco inteligente a estratégia de passos coelho ao dissociar-se daqueles junto de quem deveria buscar apoio - os governos grego, espanhol e italiano - para uma frente comum junto da Comissão Europeia de forma a  conseguir desta as condições necessárias e suficientes para tornar menos tormentoso o caminho para a recuperação do crescimento económico.
Mas no seu autismo irreversível a coligação só consegue ouvir-se a si mesma e não dá sinais de concluir por aquilo que, interna e externamente, já quase todos os analistas concluíram: esta receita falhou rotundamente e não há forma de, com ela, conseguir resultados daqueles que vão sendo evidenciados pelos indicadores conhecidos...


BANDA SONORA: "The Man-Machine" dos Kraftwerk



Publicado em Maio de 1978, «The Man Machine» foi o sétimo albúm dos Kraftwerk e considerado um dos mais importantes de quantos foram alguma vez publicados.
O seu carácter vanguardista começa logo na capa, que remete para o construtivismo russo e para a escola Bauhaus.Mas existem outros motivos para sublinhar a sua importância: o recurso a instrumentos fabricados pelos próprios elementos do grupo ou a associação do ritmo a uma linha melódica bem definida.
É por esta altura que os Kraftwerk assumem que chegou-se a um tempo em que o trabalho de estúdio é tão relevante quanto o era o piano na época de Mozart.

LITERATURA: Os romances de Don DeLillo entre 1988 e 2003

«Libra» (1988) foi considerado o “grande romance americano” de DeLillo, aquele para o qual sempre se encaminhara e que o levara a constatar numa entrevista: “a morte de Kennedy inventou-me.”
O livro alternou duas histórias numa montagem rápida. Na primeira antigos agentes da CIA, furiosos por terem sido atraiçoados pelo presidente aquando da tentativa de invasão de Cuba, imaginam um falso assassinato de Kennedy para o que dispõem de indícios para criarem uma pista, que remontaria até Fidel Castro. Só lhes falta criar um assassino para o que esboçam um retrato-robot.
A segunda história é a da biografia do jovem Lee Oswald, o homem destinado a preencher esse retrato-robot. Ele é um tipo solitário e marginal: até então a vida fora um caos de rascunhos e de esboços. De há muito que ele se vê a si mesmo como um zero à esquerda, com uma obsessão pelo presidente Kennedy ou, pelo menos, pela sua aura mediática. Quando o vê na mira telescópica da sua arma o caos da sua vida focaliza-se: a imagem muda de tremida para bastante clara. No momento em que dispara, ele sai do obscuro anonimato para entrar na “imagem”.
Para DeLillo Oswald não é um psicótico marginal. Pelo contrário, ele é pressionado até ao limite, correspondendo ao estereotipo da identidade americana.
DeLillo disse que “a televisão chegou à América a bordo do Mayflower”. De Emerson ao Gatsby de Fitzgerald, o imperativo americano sempre foi o de trocar um eu antigo e caótico por um eu imaginário - uma imagem magnífica.
«Mao II» (1991) constitui uma espécie de post-scriptum a essa súmula enciclopédica da cultura americana, mas numa vertente ensaística sobre a multidão e a solidão.
A multidão é a massa humana que, em Teerão, acompanha o ayatollah Khomeyni à sua última morada, ou a que, na praça Tiananmen, empunha o Livro Vermelho. É o retrato de Mao, reproduzido até ao infinito por Andy Wharol.
A solidão é a de um escritor fantasma, enclausurado no anonimato, vivendo escondido nas montanhas como se fosse um chefe terrorista.
Em forma quase estenográfica, encontram-se clãs, cabalas e conspirações, mas também a proliferação das imagens até ao infinito e o fascínio pela violência bruta - com todos esses temas a serem escrutinados até à obsessão por DeLillo, que os designa como sintomas dos nossos tempos perturbados.
É um romance que sintetiza não só a macro-história identificável nas capas dos jornais, mas também o insuspeito arquipélago das micro-histórias meio esquecidas.
«Submundo» (1997) é o mais autobiográfico dos livros de DeLillo, que nele recapitula as suas obsessões de sempre, mormente as teorias conspirativas e a sensação de o real não ser mais do que o “`já visto” da imagem, e a expectativa pelo fim dos tempos.
No interstício deste projeto de grande fôlego, escreveu textos breves, quase contos, onde se reconhecem as suas idiossincrasias: «Body Art» (2001) e «Cosmopolis» (2003), com que quis criar uma fábula sobre o fim do mundo no centro de Manhattan.