quarta-feira, 19 de junho de 2013

LITERATURA: Kettly Mars e o seu «Fado»

Kettly Mars está a ser reconhecida como a principal escritora da literatura haitiana, com os seus romances a surgirem nos escaparates das livrarias francesas.
Mas quem é ela? Nada melhor do que, para o efeito, recorrermos á sua página pessoal em que ela se narra a si mesma:
Nasci e cresci em Port-au-Prince, no Haiti, no seio de uma família da classe média de que era a mais nova de quatro irmãos.
Pode-se dizer que tive uma infância e uma adolescência felizes, marcadas por um gosto permanente pela leitura, que acompanhava os sonhos da rapariga solitária, que então era!.
A minha mãe comprava livros nos alfarrabistas do Mercado do Ferro, na parte baixa da cidade, passando-mos depois sem qualquer censura.
Dessa profusão de leituras ao acaso, guardo ainda viva impressão de, entre outros, «Uma Pousada na Jamaica» de Daphne de Maurier e «O Amante de Lady Chatterley» de D.H. Lawrence.. Data, igualmente, de então o voto pessoal de vir um dia a escrever um livro.
Uma promessa esquecida durante uns anos por força da entrada no mercado do trabalho aos 19 anos e, depois, pela condição de esposa e de mãe…
Já tinha passado há muito os trinta anos quando escrevi os primeiros versos enquanto expressão de uma música interior que indagava as cores próprias. Etapa poética para a escrita da novela, e, mais tarde, do romance, onde acabei por me sentir mais autêntica.
Após a conquista de leitores fiéis no meu país, através da autoedição das minhas primeiras obras, os romances começaram a ser editados fora do meu país, possibilitando-me as viagens para a Europa.
Escrita como paixão e como militância, que nunca foi desmentida.  Mas paixão condicionada pelo quotidiano e pela falta de tempo. Frustração existencial tal qual a conhecida pela maioria dos escritores de todas as latitudes. A que pede sempre espaço na cabeça para partir para a estrada das palavras em contraponto com a rotina do emprego necessário para garantir um salário.
No entanto, após o 12 de janeiro de 2010, decidi conquistar o tempo, que me faltava. De viver para e pela paixão da escrita. Desde esses 48 segundos de uma tarde de janeiro em que a terra tremeu e sepultou milhares de vidas à minha volta, decidi entregar-me por inteiro à escrita. E libertar o sopro criativo. Afinal o betão é tão frágil quanto as placas tectónicas se quebram debaixo dos nossos pés. Perante a urgência decidi-me pelo salto no vazio. Um ato de fé na vida.
Noutro texto inserido no mesmo site, ela explica o fascínio pela atividade da escrita:
A escrita tem essa forma de surpreender, de confrontar-nos connosco. E quando julgamos controlá-la acaba por ser ela a dominar-nos.
Pode-se fazer da escrita o sentido da vida? e para quê? Ela nunca foi, nem nunca será uma escolha pessoal. Não existe livre arbítrio quando somos tocados pela sua graça!
Mas volto ao início e isso é extremamente importante. A escrita no Haiti tem essa forma de surpreender porque, mais tarde ou mais cedo, transforma-se em militância, transforma-se na consciência de uma consciência, o motor e a alma de uma máquina, que funciona à base da paixão.
A escrita elimina-nos a possibilidade de uma vida calma, porque é o antídoto à negação da existência. Porque, face aos nossos olhos, vê por nós, como se duplicasse a visão. Ver a vida sob a vida.
A escrita é o antídoto para o desespero, quando o presente nos olha e morre na nossa presença.
A escrita escreve-se, então, por si mesma e compromete-se comprometendo-nos. No empenho em criar uma memória, de contornar a recusa do desespero face ao tempo, linha a linha, palavra a palavra.
É uma escultura de sangue, que oferecemos como símbolo de resistência aos irmãos e irmãs, efémeros passageiros da mesma frágil jangada.
Resistência, que é paixão, tal como respirar.
É a que fica, que nos queima, mas sobrevive. Consome-nos mais sobrevive. Exalta-nos e sobrevive. Uma paixão que só se extingue com a perda do raciocínio ou com o último suspiro seja lá por que ordem eles venham.
«Fado» é o seu terceiro romance e o primeiro editado pela Mercure de France em 2008, editora apostada em dá-la a conhecer no mercado francófono.
Trata-se de um romance sensual e melancólico com a maravilhosa música portuguesa como banda sonora para oferecer o retrato de duas mulheres maltratadas pela vida, mas apaixonadas.
Uma delas é Anaise a quem o marido, Leo, abandonou em proveito de uma rival mais jovem.
Para não cair no desespero ou na raiva, ela inventa uma nova vida e uma outra identidade, Frida, que seria uma espécie de irmã gémea, que se dedicava á prostituição num dos bordéis mal afamados de Port-au-Prince.
Através de Frida ela irá aprender a reapropriar-se do corpo e a seduzir os homens com receitas ancestrais, mas, mais importante do que isso, a voltar a acreditar no amor. 
Eis um extrato elucidativo do romance:
Foi preciso que Léo se tenha divorciado de mim para que se tornasse no meu amante.. O amante que desconhecia. Hoje tenho-o nas palminhas, dá-me tudo o que lhe exijo.
Julga-me conhecer, mas tornei-me numa outra. Outra, porque livre. Porque Frida me habita da cabeça aos pés.
Ainda me lembro da manhã em que me anunciaste, que te ias embora. Num domingo, Léo. Como se fosse um dia decente para se abandonar a esposa.
Tu desafiaste-me, mas acabaste por te tornares no meu escravo, atraído como nunca pelo meu leito.
Deixei de te beijar na boca, mas ensino-te um prazer como nunca conheceste.
Ninguém se consegue livrar facilmente de Frida, a puta dos pés magros...
Embora desconhecidos no mercado português, os romances de Kattly Mars possuem características para poderem interessar os leitores para quem o exotismo dos trópicos e a escrita escorreita são argumentos para partirem ao encontro de novas leituras...


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