domingo, 30 de junho de 2013

SÉRIE TV: «Under the Dome»


Estreou-se a semana passada na CBS e já começou a ser exibida em Portugal, por um dos canais por cabo, uma das séries, que maior expetativa suscitam para este verão.
«Under the Dome» adapta o romance de Stephen King, publicado em 2009 («The Dome») e conta com o beneplácito de Steven Spielberg como produtor.
O episódio de abertura consegue suscitar imediata adesão, quando vemos um conjunto de personagens diferentes reagir ao fenómeno paranormal ocorrido em Chester’s Mill: uma enorme cúpula transparente, vinda sabe-se lá de onde, passa a rodear toda a pequena cidade, circunscrevendo os seus habitantes e visitantes de passagem a um espaço bastante reduzido.
Perante uma evocação tão óbvia do 11 de setembro, essas personagens irão reagir sem se limitarem a acatar os aparentes estereótipos em que se parecem inscrever.
Há um xerife a contas com um pacemaker, que falha amiúde; uma jornalista disposta a indagar tudo quanto se passa à sua volta, mas incapaz de compreender a vida dupla do marido; uma jovem empregada do bar, que é candidata a passar a série dentro do bunker  antiatómico, aonde o ciumento namorado a quer manter longe de quaisquer outras tentações masculinas; um assassino profissional tenta afastar-se o mais rapidamente do local aonde escondeu o cadáver da sua vítima mais recente e desespera por o não conseguir; ou um vendedor de automóveis com ambições políticas e excitado pela oportunidade para exprimir os seus «dotes» de liderança.
O que se começa a compreender-se é que, a exemplo de «Twin Peaks», as fachadas tranquilas das casas da cidade escondem vícios privados, que ameaçam vir á superfície. E a cúpula acaba por catalisar um ambiente de permanente tensão, que ameaça a integridade física dos involuntários encarcerados.
Na verdade, os habitantes de Chester Mill’s tenderão a parecer aqueles peixes dos aquários que, enlouquecidos pela escassez de espaço para se moverem, começam a comerem-se entre si.
Visto o primeiro episódio, ficámos expectantes quanto aos outros doze. E eu, pecador me confesso, admirador persistente de tudo quanto costuma vir acompanhado com a chancela do autor de «Carrie», «Shining» ou «Dreamcatcher». Até porque permite uma análise aprofundada dos temores norte-americanos suscitados pelo atávico receio de se verem inseridos num contexto para o qual não estão maduramente preparados.


sexta-feira, 28 de junho de 2013

FILME: «Estórias» de João Gomes


Recentemente estreado fora do circuito das salas comerciais o filme de João Gomes é revelador da solidão em que vivem muitos portugueses.
O caso mais paradigmático nele abordado é o do já desaparecido Senhor do Adeus, esse João Serra, que andou anos a fio a dizer adeus aos automobilistas na zona das Picoas ou do Restelo, porque, como explicou em múltiplas entrevistas, encontrou assim a forma mais saudável de vencer o incómodo da casa vazia durante a noite, já que nunca foi dado a sentar-se no sofá a ver televisão.
Mas o filme de João Gomes visita, igualmente, o quotidiano de outras três pessoas dispostas a superarem o peso de viverem sozinhas. Há assim a solteirona, que passa os dias entre o local de trabalho, as ruas aonde faz jogging ou as aulas no ginásio, ostentando um comportamento obsessivo eloquente quanto ás razões de nunca ter encontrado um parceiro afetivamente compatível.
Temos também a viúva, que se tornou num dos rostos mais conhecidos dos canais generalistas de televisão por animar programas de grande audiência enquanto assistente contratada para aplaudir. E aonde os sorrisos de simpatia não disfarçam a inveja (esse tão mitificado defeito luso!), que diz suscitar à sua volta.
Ou ainda o divorciado que passou a organizar jantares com grupos de pessoas desconhecidas entre si e onde põe à discussão coisas tão absurdas como o que gostariam de fazer se se vissem no derradeiro dia de existência do planeta.
Realizado com poucos meios, mas com incontestada eficácia narrativa conferida pela montagem, «Estórias» é um bom exemplo do cinema nacional apostado em partir de realidades fortes para construir universos ficcionais demonstrativos de muitas das idiossincrasias escalpelizáveis à nossa volta.


LIVRO: «O Sargento e o seu Caso» de Magdalen Nabb

Magdalen Nabb foi a típica escritora cuja vocação só despertou tardiamente quando, na sequência do fracasso do seu casamento, decidiu trocar a sua Inglaterra natal por Florença aonde se radica com os filhos, mesmo sem ainda saber falar italiano. Se nos primeiros tempos a cerâmica parece converter-se no seu modo de vida, depressa inicia uma série de romances policiais com o sargento Guarnaccia como protagonista e que se tornaram num êxito editorial.
Até desaparecer em 2007, Magdalen Nabb ainda publicou treze romances com este personagem, que bastaram para ser reconhecida como uma das autoras a ter em conta dentro deste género de escrita.
Em «O Sargento e o seu caso» («The Marshall’s Own Case», 1990) mergulhamos no ambiente da prostituição masculina na cidade dos Médicis, o corpo de um dos principais transexuais da cidade, Lulu, aparece numa lixeira cortado aos bocados.
Para Guarnaccia todo aquele ambiente colide com o seu conservadorismo pequeno-burguês: nem muito inteligente, nem particularmente ambicioso, ele acaba, porém, por desconfiar do primeiro suspeito com que o procurador tenta encerrar rapidamente o caso. Tratava-se de Peppina, um outro transexual com quem são encontrados os traveller cheques levantados por Lulu para financiar a sua estadia em Espanha aonde deveria estar por essa altura a fazer mais uma operação para a definitiva mudança de sexo.
Confiando no seu instinto e superando toda a distância que todo aquele ambiente lhe suscita, Guarnaccia segue uma pista, que o leva a um dos clientes do prostituto assassinado e que mais não é do que um pequeno industrial de fabrico de objetos em prata chantageado pelo amante. Encontra assim o verdadeiro assassino. Mas o maior interesse do romance não se situa propriamente na identificação do criminoso, mas nas contradições insanáveis entre uma sociedade eivada de preconceitos e esse mundo paralelo em que o sexo se transaciona. Como se a realidade não se pudesse compadecer com a vontade de Guarnaccia em ordenar o mundo de acordo com os seus conceitos ideológicos!


POLÍTICA: Sair ou não sair do euro, eis a questão!

Nas últimas semanas temos ouvido muitas opiniões a inclinarem-se para a saída do euro enquanto única solução para a crise cada vez mais cavada no país, com muitas outras a desmentirem essas vantagens, defendendo a impossibilidade de daí resultarem benefícios para a maioria dos portugueses.
Porque ainda não possuo uma posição fechada sobre o assunto, vale a pena aqui continuar a alinhar os argumentos de uma e outra parte.  Desta feita os de Nuno Teles e de Alexandre Abreu, tais quais os refletiram no artigo «Sair do euro não é suficiente, mas é necessário», que saiu na edição do «Le Monde Diplomatique» de Maio transato.
Os autores consideram que, a exemplo do que muitos outros Estados fizeram ao longo da História, existe a necessidade imperiosa de libertar o país do fardo da dívida de forma consequente e soberana.
Razões para essa urgência?
· a sangria anual de recursos que o serviço da dívida representa atualmente é comparável ao orçamento anual para a saúde ou a educação,
· lança o país numa espiral  de empobrecimento cada vez mais profunda e destina-se apenas a adiar o inevitável;
O problema da dívida pública portuguesa decorre, de acordo com ao rtigo, do decréscimo da capacidade competitiva da produção nacional no contexto da adesão à moeda única.
De facto existem razões de peso para que os bens transacionáveis produzidos em Portugal não sejam competitivos através do preço, mesmo que leve a cabo um processo brutal de compressão salarial, devido a fatores como a dependência energética, a escassa conectividade da economia ou o impacto, nas estruturas de custos das empresas, da captura de vastos setores infraestruturais (da energia às autoestradas) por parte dos interesses privados.
Para os autores restam duas opções:
· a mobilização e atuação à escala europeia a fim de assegurar a inversão da relação de forças e a transformação benigna das estruturas europeias;
· ou a saída do euro;
Esta última possibilidade permitiria recolocar o sistema financeiro ao serviço das efetivas necessidades da economia portuguesa, quebrando o padrão rentista da acumulação da burguesia nacional e os constrangimentos impostos pelo capital financeiro internacional.


quinta-feira, 27 de junho de 2013

POLÍTICA: Antes quebrar que torcer

Das muitas greves em que participei, a mais difícil aconteceu durante a docagem do petroleiro «Neiva» no Bahrain. 
Os anos setenta, que tanto haviam alimentado as nossas utopias à conta da Revolução de Abril, estavam a dar lugar aos do nosso indignado descontentamento com a inflação à comer-nos os olhos da cara e os patrões a regressarem ao autoritarismo fascista depois do susto, que os tinha dispersado como baratas tontas pelos brasis e por essa europa fora.
Convocada pelo meu sindicato, nenhum associado pôs em causa a hipótese de não acatar a luta em causa, mesmo que a tantas milhas de distância.
Durante esse dia de luta as autoridades locais quiseram entrar a bordo para nos levarem presos, já que o direito à greve não era reconhecido por aquelas paragens e até poderia funcionar como mau exemplo para quem ali dela se apercebia.
Mas a direção do estaleiro - então supervisionado pela Lisnave - opôs-se com determinação às sucessivas tentativas, que nós íamos acompanhando.
E apesar da ameaça de acabarmos numa cela, senão mesmo na ilha deserta para onde o barrigudo rei costumava livrar-se dos seus mais arrojados súbditos, ninguém vergou na decisão de levar por diante a luta.
É esse antes quebrar que torcer, que espero ver hoje cumprido pelos trabalhadores de norte a sul do país. Para demonstrar ao (des)governo, e aos seus patrões representados pela troika, que continua aqui a viver um povo tão indomável, quanto o reconhecia aquele muito citado cônsul romano agastado com a resistência indómita dos lusitanos...


POLÍTICA: a desilusão dos descoroçoados apoiantes de passos coelho

Quem possui da política a expectativa da intriga e dos jogos sujos de bastidores tem contado com algumas desilusões de monta nos últimos meses à conta de quem liderou o anterior governo socialista.
Primeiro foi José Sócrates em quem miguel relvas confiou a possibilidade de abrir margem de manobra ao (des)governo à conta do que esperaria vir a tornar-se um requisitório semanal na televisão pública contra a forma de António José Seguro fazer oposição. Como mau juiz por si mesmo se julga, o ex-doutor da Lusófona viu o sonho virar pesadelo: em vez de servir de arma de arremesso de passos e companhia contra o líder da oposição, Sócrates é ouvido atentamente nas suas contundentes críticas contra as práticas políticas implementadas a partir de S. Bento com a conivência ativa do inquilino do palácio de Belém.
De permeio surgiu o inesperado testemunho de um alto dirigente do CDS (lobo xavier) a confirmar como esta crise terrível resultante do pedido de intervenção da troika deve ser exclusivamente imputada a passos coelho e seus assessores, que não conseguiram conter a impaciência em se chegarem ao pote.
Agora foi a vez desses descoroçoados apoiantes da direita verem o antigo ministro Teixeira dos Santos não encaixar no guião para que o julgariam fadado: o de recuperar as suas desavenças com Sócrates distraindo os mais inconscientes do iminente sucesso da greve geral.
Com a mesma elevação com que o atual comentador da RTP costuma tratar das questões políticas, o professor da Faculdade de Economia do Porto só teve palavras de apreço para com o seu primeiro-ministro pela forma como, até à exaustão, terá procurado evitar a intervenção da troika.
Se o livro de David Dinis e de Hugo Filipe Coelho já descrevera exaustivamente as batalhas desesperadas em prol da escusa ao resgate, os testemunhos de quem as viveu vai esclarecendo sobre a narrativa que, já sem outros argumentos, passos coelho continua a utilizar para se pretender em vão credibilizar-se à conta da disseminação de mentiras sobre a «pesada herança», que terá recebido.
Esquece-se ele do célebre ditado popular: «a verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima». O que se vai traduzindo num cada vez mais óbvio enaltecimento da ação política de Sócrates em detrimento desta vergonhosa prática de vende-pátria protagonizada pelo seu sucessor...


quarta-feira, 26 de junho de 2013

LIVRO: «Terras do Demo» de Aquilino Ribeiro

Devo comparar a leitura de «Terras do Demo» de Aquilino Ribeiro à das que costumo fazer de títulos de língua inglesa ou francesa. É que posso saber o suficiente para compreender o que diz o autor, mas passo por cima de muitas palavras desconhecidas, cujo sentido apenas suponho.
É claro que, acaso fosse um leitor mais criterioso, postar-me-ia com o dicionário ao lado e não passaria nenhuma página do romance sem que o tivesse de consultar várias vezes para depreender o seu verdadeiro significado.
Na escrita de Mestre Aquilino é essa uma inevitabilidade, que desafia o leitor: o vocabulário é tão rico, que muitas das palavras por ele utilizadas já devem estar quase eliminadas do léxico nacional por não haver quem as utilize.
Mas a leitura de «Terras do Demo» que, em 1919, foi um dos primeiros romances do jovem Aquilino, impressiona ainda pela qualidade e maturidade do autor, então com apenas 34 anos.
Situado na zona geográfica aonde nasceu o autor, o romance decorre de um conhecimento profundo das suas gentes cujo linguajar replica e cujos valores sociológicos testemunha. Sobretudo quando descreve as cerimónias religiosas, os enterros e as festas populares com grande preocupação pelos mais pitorescos detalhes.
Longe da capital e das preocupações da classe política, essas terras correspondem ao cu de judas de todos esquecido, mas aonde se mantêm valores cristalizados na tradição de muitas gerações.
Existe um servilismo feudal dos que nada têm pelos que ainda são considerados como fidalgos (apesar da República ter sido implantada há nove anos) e a única forma de progredir é a dos brasis para aonde se escapulem vagas de emigrantes, dispostos a regressarem em poses de nababos.
Mas essas ausências prolongadas têm efeitos complicados: ao Alonso, que andara ao trapo pelo Rio de Janeiro, já o Brás plantara um cuco no seu ninho. Razão porque os irmãos da adúltera Zefa se travam de razões com o sedutor, acabando uns e outros seriamente feridas por pancadas ou navalhadas.
Outra hipótese é o roubo e foi assim que a Rosa do Gaudêncio arranjou as suas quarenta moedas de ouro, ao espoliá-las de um distraído almocreve, quando este passara a noite na pensão do seu pai.
Só que quem acumula riqueza sem perder os preconceitos da sua anterior pobreza não a investe, antes a esconde aonde os invejosos à sua volta a não possam abocanhar. Daí que essa mesma Rosa passe uma vida inteira de grandes provações, quando elas poderiam ter sido bem menos difíceis de suportar se se tivesse atrevido a usar o espólio escondido no cepo de madeira aonde se costumava sentar.
Mas a terra é também de padres, que fazem filhos e levam as jovens crentes «ao calvário» sem que ninguém lhes leve a mal as ousadias. Mais do que as proibições e os preconceitos existe uma aceitação conformada pelas manifestações da natureza. Até porque não faltam coscuvilheiras dispostas a servirem de facilitadoras nos encontros clandestinos entre os homens dados á concupiscência e as ingénuas vítimas condenadas pela sua credulidade. Como por exemplo Glorinhas, que protagoniza a segunda parte do romance.
Durante uns anos ela viveu a ilusão de um namoro com o Mioma, o fidalgo da aldeia, que quase todos afiançam ter cobrado à rapariga a virgindade, até por ele ser dos primeiros a disso se vangloriar.
Incapaz de contrariar a vontade da mãe que não o quer ver casado com quem não é do seu estatuto, ele parte durante um par de anos em visitas pelas capitais europeias.
Ao regressar já a rapariga se esquiva a novos encontros, até por ter aceite a proposta do Joaquim Javardo, um agricultor abrutalhado mas com riqueza acumulada.
A possibilidade de ver a rapariga a servir de leito ao labrego leva-o a multiplicar-se em artes de sedução, para o que conta com a ajuda da mais hábil de entre as alcoviteiras locais. E consegue desfazer o noivado … sem que lho proponha consigo enquanto asizada alternativa. E, quando, enfim, a tal se decide acaba por encontrar Glorinhas violada por João Bispo, o atrasado mental, que há muito cobiçava a prendada vizinha.
É nesse final aberto que Aquilino deixa o leitor, quando acaba o livro. Com a violência do ato a corresponder a toda a agressividade latente numa terra agreste, que só o Demo poderia  consagrar...


terça-feira, 25 de junho de 2013

GRANTA: «Espelho da Água» de Rui Cardoso Martins

Como é que tantos eus podem ser sugestionados pelo breve vislumbre de um cadáver a passar à beira de um cacilheiro?
É esse o tema do conto de Rui Cardoso Martins inserido no primeiro volume da edição portuguesa da revista «Granta».
Muito embora os marinheiros da embarcação não tenham conseguido apanhar o corpo levado pela corrente no sentido da foz, os duzentos passageiros da viagem entre as duas margens do Tejo dividem-se entre os que se congratulam por não serem eles quem está nessa definitiva condição, e os que se angustiam com o pensamento de nela virem a cair proximamente.
O indiano Kantilal, que vende gatos elétricos na Praça do Comércio, sonha com a possibilidade de, um dia, conseguir que o seu corpo descesse Ganges abaixo de acordo com a sua tradição cultural. 
Maria Rosa ainda rumina a mais recente desilusão amorosa, ciente de constituir dano tão irreparável quanto o da válvula que abre e fecha mal à saída do seu esgotado coração.
Há também Filomena, a empregada da limpeza de uma instituição bancária, tão preocupada com o filho, que já tem encarcerado no Estabelecimento Prisional de Lisboa, como com o mais novo, que se arrisca a seguir-lhe os passos muito em breve.
O caso da florista Adelaide é, igualmente, problemático: não só o negócio está péssimo como deu em engravidar de uma ligação ocasional com um amante, que dela logo se desinteressara, atribuindo a responsabilidade pelo futuro filho ao namorado de anos. Ora este, se já bebe a horas e a desoras pelos mais variados motivos, muito maior razão encontra para comemorar a notícia que ela lhe traz.
E há, enfim, o caso do senhor Fonseca que de proprietário de restaurante durante décadas, se vira sem negócio e na iminência de perder a casa em que habita. Daí que fique aliviado quando se teta um cancro do fígado em estado avançado, por lhe poupar o sofrimento adicional de morrer debaixo de um viaduto ou numa valeta.
Em poucas páginas, Rui Cardoso Martins demonstra como aprimorou a arte de testemunhar o mundo à sua volta descoberto em tempos, quando assinava as crónicas de tribunal para o jornal «Público».
Está sempre presente o tema da morte  - o que não surpreende tendo em conta a biografia do autor - mas também o retrato de uma sociedade portuguesa a contas com uma crise de incomensurável dimensão.
Se existem os que desistem pela via do suicídio, sobram os conformados, capazes até de receber a pior das notícias com o alívio de escaparem a desdita ainda maior do que aquela para que pareciam empurrados. Mas muitas outras especificidades do comportamento dos portugueses vêm ao de cima: a vontade de subverter regras por parte dos marinheiros dispostos a interromper a viagem para pescarem um choco; o rancor silenciado contra os engenheiros e os administradores, que querem impor regras demasiado rígidas; a importância conferida às diferenças hierárquicas, mesmo quando se está no fundo da escala social ou a desresponsabilização masculina perante as gravidezes semeadas aqui ou além.
Num número de grande qualidade, como o é esta primeira edição da Granta, o conto de Rui Cardoso Martins é um dos mais interessantes...


segunda-feira, 24 de junho de 2013

POLÍTICA: petizes ignorantes e estúpidos

Um petiz reacionário e desinformado quis dar nas vistas ao exigir o conhecimento dos valores supostamente gastos pelo Estado com os sindicalistas dos professores. Um episódio, que é eloquente quanto à qualidade do ensino providenciado pelo PSD aos seus pupilos nas suas mui publicitadas universidades de verão.
Como castigo da sua manifesta ignorância e estupidez tal petiz deveria ser obrigado a um elucidativo trabalho de casa em folha de excel a apresentar exaustivamente a todos os portugueses: quanto é que custam aos contribuintes os catorze seguranças permanentemente destacados para defenderem as costas de passos coelho? E quanto custam o de todos os demais seguranças destacados para salvaguardar a integridade física dos demais ministros e secretários de estado?
O valor, se divulgado junto dos portugueses, seria decerto ajuizado como uma das tais «gorduras do Estado», que este (des)governo prometeu eliminar e acabou por empolar significativamente.
Mas, ainda para melhor esclarecimento do petiz, seria conveniente passar-lhe ainda mais um TPC de verão: quantificar os custos dos assessores nacionais (a começar pelo inefável Borges) e estrangeiros contratados por este governo para o assessorarem nas privatizações e outras negociatas com que têm vindo a aumentar os proveitos de quem se julgam representantes e contra esse povo crédulo, que os pôs no poder iludido pelas suas promessas mentirosas e que, nestes dois anos, só tem vindo a empobrecer a olhos vistos.


domingo, 23 de junho de 2013

CANTOS REVOLUCIONÁRIOS: «A Las Barricadas»

A Guerra Civil de Espanha contou com muitas canções revolucionárias, que continuam a fazer bastante sentido entoadas hoje em dia.
Numa altura em que a Turquia ou o Brasil são palco de novos movimentos dos povos pela liberdade e pelos seus direitos a serem mais felizes, esta canção anarco-sindicalista merece ser aqui evocada.
Ela fora composta em 1883 por Waclaw Swiecicki, popularizando-se então por toda a Europa, que se solidarizava com as lutas operárias polacas.
Cinquenta anos depois o poeta Valeriano Orobon Fernandez criaria a versão espanhola, que logo seria adotada nas frentes de batalha contra os franquistas.

Negras tormentas agitan los aires,
nubes oscuras nos impiden ver,
aunque nos espere el dolor y la muerte,
contra el enemigo nos llama el deber.
El bien más preciado es la libertad.
hay que defenderla con fe y valor.
Alza la bandera revolucionaria,
que del triunfo sin cesar nos lleva en pos.
Alza la bandera revolucionaria,
que del triunfo sin cesar nos lleva en pos.
¡En pie pueblo obrero, a la batalla!
¡Hay que derrocar a la reacción!
¡A las barricadas! ¡A las barricadas
por el triunfo de la Confederación!
¡A las barricadas! ¡A las barricadas
por el triunfo de la Confederación!




FILME: «Freaks» de Tod Browning (1932)

Freaks é um filme único na história do cinema porque, exceto em dois casos, é interpretado por fenómenos de feira, todos eles com graves anomalias físicas: anões, o homem tronco, as irmãs siamesas, a mulher barbuda, etc.
O seu surgimento tem a ver com a intenção de Irving Thalberg, o produtor da tradicional e puritana Metro-Goldwyn Mayer, em superar os filmes fantásticos da Universal, que acumulava sucessos com títulos como Drácula (1931). E não se enganou ao confiar a realização do seu projeto a Tod Browning, mesmo ignorando que a censura trataria de amputar mais de 25 minutos ao filme.
Browning conhecia o universos circense desde a adolescência. Depois, encontrara Lon Chaney em 1919, com quem rodará uma dezena de filmes fantásticos na década seguinte, a maior parte dos quais passados no ambiente das feiras populares. Num deles, The Unknown (1927), o personagem não hesitava em amputar os braços por amor a uma amazona.
Em 1931 ele realiza a primeira versão sonora de Dracula com Bela Lugosi, logo seguido de The Iron Man . Era, pois, o realizador ideal para concretizar o projeto de Freaks.
O filme começa com o anuncio de seres monstruosos disponíveis para serem apreciados numa das barracas da feira: um homem tronco, a mulher pássaro, as irmãs siamesas, etc.
A multidão precipita-se para esse circo Tetrallini para assistir ao espetáculo. Seguimos depois para os bastidores, com a vida quotidiana dos artistas e das suas roulottes. O anão Hans está noivo de Frieda, que tem a sua altura. Mas a bela trapezista, Cleópatra, aceita presentes dele, apesar de o desprezar, mas estimulada pela notícia da fortuna, que em breve lhe caberá. Razão para, com a ajuda de Hércules, desposá-lo, para depois o envenenar e herdar-lhe tal pecúlio.
Quando se celebra a boda, Cleópatra repudiará violentamente Hans no copo-de-água, insultando-o e humilhando-o perante todos os convidados.
Não tarda que o anão se aperceba do envenenamento a que ela o sujeita a pretexto de dele cuidar. Mas os amigos monstros dele decidem vingá-lo: numa noite de tempestade matam Hercule (castram-no na versão censurada) e mutilam Cleópatra, que se transforma assim num novo fenómeno de feira: «a maior monstruosidade viva de todos os tempos».
Freaks é o filme da transgressão dos limites e da inversão dos valores. São os personagens de aparência «normal» (Cleópatra e Hercule), quem revelam ser verdadeiros monstros , enquanto os seres disformes irradiam humanidade e ternura.
Cleópatra e Hercule - imagens convencionais da beleza e da força - são ainda mais monstruosos, porque não hesitam em cometer todas as indignidades em proveito do roubo planeado. Pelo contrário o filme considera os «monstros» físicos como indivíduos com quem o espectador é impelido a partilhar as emoções, as deceções e as humilhações: como, quando a embriagada Cleópatra, injuria cruelmente os convidados do copo-de-água. Os anões Hans e Frieda, as irmãs siamesas, a mulher barbuda e o marido,  o esqueleto vivo, o andrógino, o homem tronco, o torso vivo, a morena «maravilha sem braços», a «Vénus do Milo» loura, as gémeas com cabeças de agulha, a mulher pássaro e a rapariga cegonha, são todos comovedores, solidários e dotados de um verdadeiro sentido de humor.
Freaks é, pois, um filme espantoso na fronteira entre o que é ou não normal. Fisicamente, Hercule e Cleópatra demarcam-se do grupo dos normais, ele pela sua força e apetite, e ela pela beleza, sedução e situação no espetáculo (no trapézio).
Simetricamente Hans e Frieda distinguem-se dos outros monstros na medida em que nem são mutilados, nem disformes: apenas constituem modelos reduzidos, miniaturizados.
O jogo da normalidade e da anormalidade é, assim, mais subtil que a oposição inicial poderia pressupor, já que se manifesta quer no plano físico, quer moral, desenvolvendo-se inflexões frequentes num e noutro ao longo da história.
O filme foi muito mal recebido em Hollywood chegando a ser proibido em Inglaterra até 1963. Ainda assim teve uma influencia decisiva noutros filmes de «monstros» ulteriores como foram o caso de La Donna Scimmia de Marco Ferreri (1964) e The Elephant Man de David Lynch (1980). Em França constituiria objeto de culto do movimento surrealista durante os anos 30.