quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

BANDA SONORA: «Gute Nacht» de Schubert, por Fischer-Dieskau



Em dia de aniversário de Schubert, é tempo de recordar o lied que dele mais aprecio, ademais na superlativa interpretação de Dietrich Fischer Dieskau.

LIVRO: «Morte no Teatro La Fenice» de Donna Leon



Devo a Joyce Di Donato, que estará na Gulbenkian no sábado a cantar os temas do seu álbum «Drama Queens», a descoberta de Donna Leon. É que, algumas semanas atrás, quando o canal ARTE transmitiu um documentário alusivo à mezzo soprano norte-americana, a escritora de policiais surgia aí como uma das suas melhores amigas e com a propagandeada característica de situar frequentemente as suas histórias em ambientes de teatros líricos, mormente em Veneza, aonde a câmara acompanhava as duas a passearem-se e a comentarem o mútuo interesse pela música barroca.
Esse estímulo levou-me a ler «Morte no Teatro La Fenice», romance escrito vinte anos atrás, mas que a terá promovido ao patamar das grandes autoras do género.
Finda a leitura, direi que também não é preciso exagerar. Embora interessante quanto baste, Donna Leon fica a léguas da inexcedível Patricia Highsmith que, anos a fio, nos habituou a romances impressionantes em que nos púnhamos a espreitar o que se passava duas ou três páginas adiante por não suportarmos o suspense em que éramos mergulhados.
Temos então a morte fulminante do maestro Helmut Wellauer no intervalo para o último ato da «Traviata», que ele estava a dirigir na conhecida sala de Veneza.
Cianeto, identifica logo de imediato uma médica trazida da plateia ao cheirar a chávena de café tombada ao lado do morto.
Porque o crime parece óbvio é chamado um comissário, que nos acompanhará por todas as páginas seguintes.
Guido Brunetti, assim se chama, não é nenhum Sherlock Holmes, dando-se a delongas para compreender verdadeiramente todos os caracteres dos possíveis suspeitos e da suposta vítima.
Embora  se trate de uma mera suposição, que a autora nunca confirma, Wellauer é uma espécie de duplo de Karajan, já que a ele se assemelha no prestígio, no perfecionismo da direção orquestral, no carácter reservado e na ambiguidade do seu comportamento durante o período nazi.
Brunetti vai, então, entrevistar o volumoso barítono Dardi, o pouco talentoso tenor Echeveste, o encenador Santore e a soprano Flavia Petrelli.
Começam a surgir possíveis situações equívocas, que poderão explicar o sucedido ao maestro: por exemplo fica-se a saber que, nessa mesma noite, Santore e Flavia Petrelli tinham sido vistos a saírem encolerizados do camarim aonde a tragédia estaria iminente, e se o primeiro não hesita em reconhecer esse facto perante o comissário, já o mesmo não sucede com a soprano. Mais adiante viremos a compreender quão idênticos são os motivos por que se haviam dado a tanta emoção: o homofóbico Wellauer não se coibira de os prejudicar seriamente por lhe indignarem as pulsões por parceiros do respetivo sexo.
Mas não querendo sujeitar-se a juízos demasiado apressados, ainda que os superiores o pressionem para arranjar rapidamente um culpado, Brunetti explora outras possibilidades: a viúva Elizabeth muito mais nova do que o defunto e herdeira da sua avultada fortuna. Ou Brett, a arqueóloga que coabita com Flavia e deixou suspensas as suas reconhecidas escavações na China para se sujeitar ao papel de assistente da amante. Ou ainda a velha Clemenza Sentina, que fora amante de Wellauer nos finais dos anos 30, quando estivera no auge do seu percurso artístico e se transformara numa indigente a (sobre)viver dificilmente num tugúrio de uma das ilhas mais pobres da cidade dos doges.
Enquanto não descobrimos (embora cedo adivinhemos) a resolução do caso, Donna Leon passeia-nos pela personagem mais interessante do romance: a própria cidade, que descreve assim, vista pelo olhar de Brunetti: Veneza que em tempos fora a capital da vida de dissipação de um continente, tinha-se transformado numa cidade provinciana que, virtualmente, deixava de ter vida depois das nove ou dez da noite. Ao longo dos meses de verão, a cidade conseguia recordar-se do seu passado de cortesã e cintilava esplendorosa, desde que os turistas continuassem a pagar e o tempo se mantivesse agradável. Todavia, durante o Inverno, ela tornava-se uma mulher velha e enrugada, desejosa de se deitar cedo e deixando as suas ruas desertas aos gatos e às recordações do passado. (pág. 49)
Ou também o público do La Fenice por quem a autora não parece demonstrar grande consideração: a coisa mais favorável que se pode dizer sobre essas pessoas é que são meros cães. Não vão ao teatro com o intuito de ouvir boa música, ou para assistir a um canto lírico cheio de beleza; vão para poderem usar os seus trajes novos e para serem vistos pelos seus amigos, pessoas estas que vão ao teatro exatamente pelas mesmíssimas razões. (pág. 178)
Brunetti vai-se interessando cada vez mais pela personalidade do morto, que descobre ter sofrido uma súbita perda de qualidades auditivas nas últimas semanas, o que explica o desagrado dos elementos da orquestra pelo trabalho com eles desenvolvidos nos ensaios da ópera de Verdi. Um médico de Pádua, que o maestro consultava anonimamente, vem confirmar essa tese. A ela associa-se outra não menos significativa: a pedofilia que ele sempre manifestara, quer engravidando a irmã de Clemenza Sentina, que morrera aos doze anos de aborto clandestino no verão do início da Segunda Guerra, quer, mais recentemente, violando a enteada da mesma idade numa noite em que julgava Elizabeth a voar para Budapeste.
Brunetti está então em condições de compreender o sucedido: para se vingar do marido, Elizabeth recorrera aos seus conhecimentos de médica e causara-lhe a surdez  progressiva com sucessivas injeções, que ele começara por julgar serem vitaminas.
Quando soubera definitiva a perda das capacidades auditivas e, consequentemente, da sua carreira, ele arranjara cianeto e simulara o crime suicidando-se, valendo a Elizabeth não ter chegado a ir ao camarim na altura em que ele lho solicitara.
Mas, porque toda a antipatia do comissário é endossada a Wellauer, ele redige um relatório  apontando para a tese de suicídio de um génio inconformado com a impossibilidade de prosseguir a sua admirada obra.

BANDA SONORA: Luis de Freitas Branco - A morte de manfredo


Logo à noite, às 21h, e amanhã às 19h, a Orquestra da Gulbenkian dirigida por Paul McCreesh, começará o concerto com esta peça de Luís de Freitas Branco por ele composta em 1906, quando contava com apenas quinze anos.
Embora só conhecida há meia dúzia de anos, já que o compositor a renegou, já é peça orquestral de grande dimensão e complexidade.
Um bom início para um programa, que se anuncia muito prometedor!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

POLÍTICA: Por uma nova política económica


Fernando Medina é um dos deputados socialistas, que me merece leitura mais atenta em tudo quanto escreve, pela inteligência com que analisa os desafios colocados pela atual conjuntura política e económica. Naquele que constituiu o primeiro artigo da sua, doravante, colaboração regular com o «Jornal de Negócios», ele publicou hoje um texto com o título «Por uma nova política económica».
Começando por admitir a tese de uma certa normalização pelo facto de termos regressado aos mercados, ele considera que estaremos em condições de acesso a financiamento semelhantes às que teríamos com a aprovação do PEC IV mas confrontados com uma situação financeira, económica e social muito mais degradada, seguramente a mais complexa da nossa história recente.
Assim teremos:
· uma economia em recessão profunda e prolongada, com o PIB a acumular uma perda de 6% entre 2010 e 2013 e com a previsão de chegar a 2016 abaixo do valor de 2010 (dados do Governo).
· as nossas exportações limitadas por uma prolongada estagnação na Europa e pela provável continuação da valorização do Euro.
· uma dívida pública perto dos 125%, com o diferencial entre crescimento nominal do PIB e taxa de juro a situar-se em torno dos 4% e sem expectativa credível de excedentes orçamentais primários que o anulem.
Por seu lado Fernando Medina sintetiza em estratégia do Governo na austeridade, no investimento privado à custa de salários cada vez mais baixos e numa permanente navegação à vista em função dos resultados da execução orçamental. Ora esse programa não é exequível, não é eficaz e por isso não é credível. Funda-se na ilusão de um crescimento por milagre, sempre adiado trimestre após trimestre. Insiste numa austeridade brutal sobre uma economia em recessão profunda. (…) Ignora os efeitos sociais e políticos de uma estratégia de empobrecimento sem fim.
Face a uma Europa que não vai crescer tão cedo, Medina propõe alternativa oposta a essa tendência que:
· enfrente a dívida com a prudência de uma visão de médio prazo, adequando os juros e maturidades ao previsível baixo crescimento.
· abandone a austeridade gratuita, em favor de políticas estruturais profundas de reforço da sustentabilidade das finanças.
· promova um novo Acordo de Rendimentos, como pilar central da estabilização das expectativas e da competitividade.
· mobilize os recursos de que dispomos, nomeadamente comunitários e extraordinários, em favor dos fatores críticos de competitividade (como a qualificação ou fiscalidade), da sustentabilidade da despesa, e do reforço da coesão.
Em síntese: precisamos de uma nova política económica e de um projeto político que a corporize. Uma visão difícil e exigente certamente. Mas com o realismo capaz de projetar o futuro, e assim agregar a esperança coletiva.

BANDA SONORA: «Cassiya» de Diego


Um exemplo do Sega, género musical típico da Ilha Maurícia, criado originalmente pelos escravos das plantações de algodão. Habituados a serem chicoteados, o género terá surgido como forma de resistência à dor desse martírio...

POLÍTICA: No rescaldo da reunião do Rato


No Facebook o prof. Augusto Santos Silva comentou a reunião da Comissão Política do PS:
A propósito da reunião de ontem da comissão política do PS:
1. O taticismo é um erro político.
2. O unanimismo é um erro politico.
3. A emoção como argumento é um erro político.
4. Andar aos ziguezagues é um erro político.
5. Pensar que se pode tomar decisões sobre programas e lideranças do PS como se fossem moções da JS de há trinta anos atrás é um erro político, um enorme e talvez fatal erro político.
Ao que argui em jeito de comentário:
Ok! Temos, pois, só erros políticos? Só? Não é essa a minha opinião. Apesar de estarmos todos no mesmo partido o seu futuro e da esquerda portuguesa é uma guerra (não temamos a palavra!) que extravasa as fronteiras internas e se está a clarificar um pouco por toda a Europa entre quem tem a visão estratégica da gelatina em contraponto com quem sabe o potencial e os constrangimentos dos tempos vindouros e adivinha a forma de, mais do que resilientes, nos mostremos capazes de os condicionar de acordo com as classes que representamos!

FILME: «Ricardo II» de Rupert Goold (2012)



Não deixou de ser surpreendente a coincidência de ver «Ricardo II» no mesmo dia em que iria ocorrer a reunião política do principal partido de oposição no qual se colocava a hipótese de iminente mudança na liderança. Que estranha singularidade, essa de assistir à rápida destituição de um frouxo monarca, incapaz da mínima visão estratégica e cujo poder assentava no fugaz apoio de um influente grupo de bajuladores, por um outro muito mais forte e dotado de uma compreensão alargada do que se espera do exercício da governação.
É claro que outras razões aconselhavam à descoberta da obra, mesmo considerando tratar-se de uma das peças menores do dramaturgo quinhentista: por um lado constituía a primeira das quatro produções aprovadas pela BBC para conferirem um cunho cultural ao clima de cosmopolitismo incrementado pelos Jogos Olímpicos de Verão de 2012, garantindo-se a grande qualidade e rigor com que os britânicos cuidam da obra shakespeariana. Mas, por outro, o facto de ser interpretada nos principais desempenhos pelos dois atores que, consensualmente, são tidos como os dois melhores Hamlets da década anterior (Ben Whishaw na pele do rei e Rory Kinnear no de Bolingbroke) também acrescentava interesse ao título.
Análise mais aprofundada levar-nos-ia à destreza de se contar toda a trama através de diálogos em verso e de se ser tentado a parar o filme nalguns dos seus fotogramas, tão interessantes se revelavam enquanto representações fiéis da pintura da época histórica em questão.
O que está em causa é a legitimidade de se questionar o carácter divino da função real. Se o poder do monarca deriva de uma atribuição transcendente, em que sérios riscos para a preservação da alma incorrem todos quantos levantam a espada contra ele?
Ora é quase uma evidência transversal em toda a obra de Shakespeare a inevitável transgressão dos princípios aparentemente inquestionáveis em função das piores facetas do comportamento humano: a intriga, a ambição, a necessidade de se estar com os que aparentam força a cada instante…
Mas não se esperem maniqueísmos, que impeçam um juízo crítico das personagens e das suas circunstâncias. Porque não teria o futuro Henrique IV a devida legitimidade para derrubar o primo, que o mandara injustamente exilar e o espoliara das terras e demais riquezas, quando o viu órfão do respeitado pai? Poderia suportar por mais tempo todas as injustiças cometidas sobre o povo e o escândalo das benesses distribuídas a um reduzido punhado de medíocres seguidores?
Perante os riscos de degradação, que tudo tende a ameaçar, o revoltado Lencastre não recua, ainda que chegue a sentir a tentação de respeitar a convenção e permitir um exercício de poder, mesmo que ilusório, por parte do seu enfraquecido monarca. Curiosamente a noite no Largo do Rato parece ter ficado nesse impasse com os antagonistas a medirem-se e a avaliarem a oportunidade ou não de desferirem o golpe fatal...
Na peça avança-se até ao expectável desiderato da tragédia: o líder frágil acaba destituído e assassinado por quem ainda não há pouco tempo o apoiava com tanto fervor e se julga assim no direito de voltar a ser incluído entre os favorecidos pelo novo poder.
Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos do que se passará com o Partido Socialista para confirmarmos a impressionante capacidade do dramaturgo de Stratford-upon.Avon para demonstrar a intemporalidade das suas obras...

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

POLÍTICA: A Europa ou o Caos? (2)


Concluímos aqui a tradução pessoal do manifesto «A Europa ou o Caos?» subscrito por vários intelectuais europeus apostados em pensarem o estado atual da Europa e o dilema que para ela se coloca: prosseguir nesta rota de decadência e de morte ou a regeneração dos princípios para ela pensados pelos seus fundadores.
Porque se trata de um documento, que está a suscitar debates a que não nos devemos alhear, justifica-se a sua inserção neste contexto.
Tínhamos ficado nos sintomas de crise, que estão a destruir uma certa ideia de Europa.
Ela vai-se perdendo em Roma, o seu outro berço, o seu outro esteio, a segunda matriz (sendo a terceira a ideia de Jerusalém). O da sua moral e dos seus saberes, o outro espaço da invenção da distinção entre a lei e o direito, ou entre o homem e o cidadão, que está na origem do modelo democrático que tanto trouxe, quer á Europa, quer ao próprio mundo. Essa fonte romana poluída pelos venenos de um berlusconismo que tarda em desaparecer. Essa capital espiritual e cultural, por vezes englobada, a par da Espanha, de Portugal, da Grécia e da Irlanda, nos famosos «PIIGS», fustigados sem consciência nem memória pelas instituições financeiras. Esse país que inventou o embelezamento do mundo na Europa e que assume o aspeto, com razão ou não, de homem doente do continente - que miséria! que absurdo!
Essa ideia de perda ocorre por todo o lado, do ocidente ao leste, do sul ao norte, com o crescimento dos populismos, dos chauvinismos, dessas ideologias de exclusão e de ódio que a Europa deveria precisamente marginalizar, arrefecer, e que levantam vergonhosamente a cabeça: como estamos distantes do tempo em que as ruas de França se enchiam em solidariedade com um estudante insultado por um chefe partidário de memória escassa, ele mesmo que antes dissera «nós somos todos judeus alemães!». Como parecem distantes esses movimentos de solidariedade em Londres, Berlim, Roma ou Paris com os dissidentes dessa outra Europa, que Milan Kundera designava como a «Europa cativa» e que surgia como o coração da Europa! E quanto à pequena Internacional dos espíritos livres, que lutavam há vinte anos, por essa alma europeia encarnada na Sarajevo bombardeada, vítima de uma «limpeza étnica» impiedosa, aonde está agora e porque não se deixa ouvir?
E a Europa também se desfaz por causa dessa interminável crise do euro, que todos percebemos não estar controlada.
Será que essa moeda única e abstrata não é mais do que uma quimera, já que não corresponde às economias, aos recursos, às fiscalidades convergentes?
As moedas únicas, que se revelaram bem sucedidas (o marco a partir do zollverein, a lira da unidade italiana, o franco suíço, o dólar) não foram as que se apoiaram num projeto político comum? Não existe uma regra incontornável pela qual se demonstra que a existência de uma moeda única pressupõe um mínimo de orçamento, de normas contabilísticas, de princípios de investimento, em suma de políticas partilhadas?
O teorema é implacável: sem federação não há moeda que aguente!
Sem unidade política a moeda pode durar algumas décadas, mas uma guerra ou uma crise desagrega-a. Sem progresso nessa integração política, cuja obrigatoriedade está inscrita nos tratados europeus mas que nenhum responsável parece querer avançar sem o abandono de competências pelos Estados-nações e sem uma franca derrota desses «soberanistas», que empurram os povos para o fechamento em si mesmos e para a decadência, o euro desintegrar-se-á como teria sucedido ao dólar se, há 150 anos, os sulistas tivessem vencido a guerra da Secessão.
Dantes dizia-se: socialismo ou barbárie. Hoje é preciso dizer: união política ou barbárie!
Melhor: federalismo ou dissolução, e na sua eventualidade, regressão social, precariedade, explosão do desemprego, miséria.
Melhor: ou a Europa dá um passo em frente, mas decisivo na via da integração política, ou sai da História e condena-se ao caos.
Não temos escolha: é a união política ou a morte.  Que poderá assumir múltiplas formas e dar sucessivas reviravoltas. Pode demorar dois, três, cinco, dez anos e ser precedida de numerosas remissões, sempre a iludir que, de cada vez, o pior tenha sido conjurado.
Mas virá. A Europa sairá da História se nada se alterar.
Não se trata de uma hipótese, de um receio vago, de um trapo vermelho agitado na cara dos europeus recalcitrantes.
É uma certeza. Um horizonte inultrapassável e fatal. Tudo o que restar - deslumbramentos para uns, adaptações para outros, fundos de solidariedade para uns, bancos de estabilização para outros - não resultará senão no adiamento do fracasso capaz de dar ao moribundo uma ilusão de tréguas.

LIVRO: «O Cemitério dos Barcos Sem Nome» de Arturo Perez Reverte



Há alturas em que se justifica a facilidade de recorrer à tal «literatura de aeroporto», que se lê com a mesma descontração com que se masca pastilha elástica.
Não tem presunção de grande literatura, mas surge bem escrita, com uma história bem articulada e a fazer passar uns bons momentos.
Como nunca – afianço que NUNCA! - lerei José Rodrigues dos Santos, nem sequer para dar satisfação ás almas piedosas, que só consideram legítimas as opiniões sobre escritores (ou escrevinhadores?) quando os lemos, num desses momentos de cedência à facilidade optei por um romance já com uns bons anos em cima (foi publicado em 2000), escrito pelo espanhol Arturo Perez Reverte. «La Carta Esférica» ou, na sua tradução lusa, «O Cemitério dos Barcos Sem Nome».
Um romance de aventuras, pois! Com o aliciante de ter por protagonista um desses marinheiros que perdeu as graças do mar e as procura reaver nem que seja através da busca submarina de um tesouro enterrado ao largo do  Cabo Palos.
Coy é o protagonista: não estivesse ele de quarto, quando o navio aonde era oficial, encalhou num rochedo no meio do Índico e não estaria desempregado em Barcelona no dia em que, num leilão, assistiu à licitação da carta de Urrutia, um dos documentos cartográficos de maior valia para os apreciadores dessa nobre arte marítima.
Tânger Soto, técnica do Museu Naval de Madrid, e Nino Palermo, um pouco escrupuloso caçador de tesouros marítimos, vão lançando sucessivas ofertas até ela ficar legítima possuidora de um documento essencial para partir em busca dos destroços do «Dei Gloria», navio fretado pelos jesuítas em 1767 para vir da América do Sul com um importante tesouro em esmeraldas e afundado nas águas mediterrânicas na sequência de uma funesta batalha com corsários ingleses.
Depressa Coy se faz guarda-costas e assessor de Tânger, que vai procurar à instituição aonde ela trabalha. Daí para diante, e como num bom romance de ação, ele conhecerá os efeitos de quem vai à guerra: dá e leva arraiais de pancadaria.
Os maus da fita são, obviamente, os sicários de Nino Palermo, que não desiste assim tão facilmente de se associar aos lucros do negócio. E um desses trastes é mesmo ruim como as cobras: Nestor Kiskoros anda fugido da sua Argentina natal aonde exercitara os seus dotes de crápula sobre os prisioneiros políticos, que lhe tinham passado ao alcance na sinistra Escuela de los Mecanicos de la Armada de Buenos Aires.
Mas, mais do que a possível fortuna, Coy encontra motivo mais aliciante para se meter a fundo naquela aventura: Era ela, a sua obstinação, a sua busca, tudo o que estava disposta a empreender por um sonho e que o mantinha no rumo certo, apesar de ouvir o inequívoco rumor do mar nas rochas perigosamente próximas. (pág. 193 da ed. portuguesa).
Traduzindo em miúdos: ele pela-se por vir a descobrir, uma a uma, as milhentas sardas de que o corpo de Tânger parece ser coberto. E com a mais devotada atenção…
A oportunidade surgir-lhe-á nas semanas seguintes passadas a vasculhar os fundos da zona marítima demarcada na carta em causa a partir de um barco de apoio, que lhes serve de hotel flutuante: o «Carpanta», propriedade de um amigo do próprio Coy.
Os episódios vão-se sucedendo, quer no mar, quer em terra, com o fracasso a adivinhar-se até quase ao último momento, altura em que do lodo surge um vestígio da âncora almejada. Com todos os restantes destroços ali à volta.
A partir daí ocorre o expectável (novo confronto com Palermo e seus muchachos) e o fator surpresa, que Reverte não deixa de introduzir, quando já era lícito fechar o livro e passar a outra distração:  as aparências afinal iludem e Tânger preparava-se para passar a perna aos sócios e aos rivais, ficando com a fortuna só para si.
É o típico final à sierra madre, versão hustoniana na variante camiliana: Tânger e Nino matam-se um ao outro, depois dela já ter despachado o argentino, que era afinal agente duplo a seu soldo.
Coy não ilude a sentida tristeza, quando vê o navio, aonde ela planeara fugir em direção a Antuérpia, largar cabos e zarpar do cais.
Concluída a leitura o que fica? Talvez um melhor conhecimento de como os jesuítas foram ilegalizados na Espanha do século XVII por causa do seu poder político e económico crescente. E de como procuraram, em vão, evitar os efeitos da cólera real…
Ademais fica o prazer de umas horas de leitura sem pensar em gaspares, relvas e outros tunantes que tais!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

POLÍTICA: A Europa ou o caos? (1)


Numa altura em que o ideal europeu e/ou a construção europeia vai marcando passo, enquanto ganham inaudita dimensão as crispações identitárias e nacionalistas, diversos intelectuais liderados por Bernard Henri-Lévy, e entre os quais se contam António Lobo Antunes, assinaram um manifesto intitulado «A Europa ou o Caos? Reconstruir a Europa ou Morrer», que exige a inversão desta tendência para cercear o sonho.
Apesar de algumas reticências em relação a alguns dos signatários em causa, o manifesto merece uma atenção superlativa face aos impasses em que nos movemos. Daí que valha a pena conhecê-lo, mesmo que em tradução apócrifa e em sucessivas parcelas:
A Europa não está em crise, está a morrer. Não a Europa, enquanto território, obviamente. Mas a Europa enquanto Ideia. A Europa enquanto sonho e projeto.
Esta Europa de acordo com a celebrado espírito de Edmundo Husserl nas suas duas conferências pronunciadas em 1938, em Viena e em Praga, nas vésperas da catástrofe nazi. Esta Europa como vontade e representação, como quimera e como alicerce, essa Europa construída pelos nossos pais, esta Europa que soube converter-se numa nova ideia de Europa, que pode oferecer aos povos do pós Segunda Guerra Mundial uma paz, uma prosperidade, uma difusão de democracia inéditas mas que, a nossos olhos, está em vias de se perder.
Ela perde-se em Atenas, um dos seus berços, perante a indiferença e o cinismo das nações-irmãs. Houve um tempo, o do movimento filo-helénico, no início do século XIX, em que, de Chateaubriand a Byron de Missolonghi, de Berlioz a Delacroix, ou de Pouchkine ao jovem Victor Hugo, todos os artistas, poetas, filósofos, exprimiram-se em seu socorro e militaram pela sua liberdade. Estamos longe disso, hoje em dia, como se os herdeiros desses grandes Europeus não encontrassem melhor atitude do que humilhar, estigmatizar e de rebaixar esses Helénicos, quando eles se veem a contas com uma outra forma de decadência e de submissão, impondo-lhes um rigoroso plano de austeridade destinado a despojá-los dessa soberania, que eles inventaram outrora como principio inalienável. (…)

POLÍTICA: Quer-se maior mundo que o da nossa Língua?


Constitui uma das características típicas dos períodos de crise: quando os governos se sentem acossados por crescente contestação acedem a tomar medidas populistas, que sabem ter algum eco nas populações mais manipuláveis para as fazerem crer  quanto à sua capacidade em mudarem algo na sua reprovada dinâmica. Tal tipo de comportamento significa mudar o acessório para manter imutável o principal.
Sabendo isso o grupo, que se tem mobilizado contra o Acordo Ortográfico em vigor acelerou a sua atividade, ciente de poder cavalgar oportunisticamente uma conjuntura difícil de se repetir com um ulterior Governo.
Não me surpreenderia, assim, que o relvas apareça muito em breve a buscar redenção na bombástica decisão pela qual se suspenderá sine diae  o cumprimento dos calendários aprovados na legislação da República.
Os que reprovam o Acordo Ortográfico verão, assim, satisfeita uma estratégia de manifesta desonestidade intelectual e para a qual vêm utilizando os métodos do fundamentalismo salafita mais radical. Chegando a utilizar exemplos manifestamente falsos quanto à absurdidade de algumas supostas opções previstas no acordo (espetador em vez de espectador, Egito em vez de Egipto, etc)
O que os opositores ao Acordo pretendem é uma falácia: a manutenção da língua tal qual ela se escreve hoje, como se ela não reproduzisse um processo dinâmico, que o tempo vai burilando. Se os conservadores do português dos dias de hoje tivessem prevalecido desde há setecentos anos, ainda estaríamos na grafia e na sintaxe dos tempos de Fernão Lopes o que se revelaria, isso sim, um manifesto absurdo.
Existe também o argumento nacionalista: nós que criámos a língua, vê-la-íamos mudar em função da preponderância do que os brasileiros ou os países africanos de expressão portuguesa proporiam. O carácter reacionário deste argumento deveria fazer corar de vergonha quem os emite, já que a interligação entre povos pressupõe isso mesmo e se, por exemplo, as telenovelas brasileiras vieram trazer para o português falado um conjunto de expressões novas, cada vez mais massificadas, tal facto só pode ser tido como um enriquecimento a uma língua disposta a manter um potencial de adaptação à modernidade, que se deverá prezar.
Os argumentos da pureza da língua, invocada por alguns, nada mais são do que um sintoma dessa mesma sharia intelectual, que se pretende impor a quem vê a mudança sem temor.
O que os opositores ao Acordo Ortográfico fazem é, no fundo, retirar legitimidade ao nosso maior poeta, quando ele  escrevia  que todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.
Quer-se maior mundo que o da nossa Língua?

DOCUMENTÁRIO: «La Sardaigne des hommes et des chevaux» de Svea Andersson


Há séculos que os pastores de Sedilo celebram a vitória decisiva do seu «santo» Constantino com uma cavalgada desenfreada, apesar de, na realidade, o imperador em causa nunca tenha sido canonizado pela Igreja, apesar de, com a sua conversão, ter sido determinante para a expansão do cristianismo.
Para os aldeões, fervorosos crentes, essa «Ardia» de Sedilo, que ocorre no início de julho, é a maior festa religiosa do ano. Dezenas de milhares de sardos e de turistas deslocam-se a essa aldeia recôndita das montanhas da ilha para assistirem a um evento tão singular.
O documentário mostra a pressão a que se sujeitam os cerca de 2400 habitantes da aldeia - muitos deles pastores, que vivem de acordo com os ritmos dos seus animais - para se prepararem de forma a que esse dia seja um acontecimento de sucesso. Tanto mais que ainda não estão distantes dos tempos da vendettas entre os clãs rivais.
Desde jovens que os homens da aldeia se inscrevem no registo do padre que, todos os anos, designa o porta-estandarte, que encabeçará a corrida.
Neste ano de 2010, em que decorrem as filmagens, Don Agostino escolheu Giovanni Mula, alcunhado de «Su Bellu», o Belo, para essa função, apesar de ter sofrido um grave acidente no ano anterior de que ainda se está a recuperar.
Estará ele à altura de galopar em torno da igreja, perseguido por dúzias de cavaleiros apostados em o ultrapassarem? Mas Su Bellu fez a sua jura a São Constantino e quer mantê-la. Mesmo sobrando o risco da Ardia nem sequer ocorrer, já que um acidente mortal no ano anterior leva as autoridades de Roma a enviarem inspetores para ali, dispostos a imporem regras de segurança (controles de alcoolemia, vistoria dos cavalos por um veterinário, etc.)  inaceitáveis para muitos dos potenciais participantes. Em tais condições uns quantos decidem boicotar a corrida. Tanto mais que, paladinos da oposição de direita ao edil local, veem aí a oportunidade de o contestarem.
Mas Su Bellu tem razões para crer na sensatez da maioria dos conterrâneos assegurando uma festa sumptuosa em que ele será o protagonista… incrementando assim a sensação de honra da família.

Filme: «REALITY» de Matteo Garrone




No final do século XIX e na primeira metade do século XX os intelectuais mais apostados na concretização de uma sociedade sem classes, viam-na possível a partir de dois eixos evolutivos: por um lado a tendência crescente do capitalismo para cumprir a lógica marxista de minguar o número dos que tudo têm em desfavor de um número progressivamente avassalador dos reduzidos à pobreza então predispostos para se revoltarem; mas, por outro, estes últimos, através das sociedades operárias e de outras organizações similares iriam aumentar entretanto a sua cultura de forma a compreenderem devidamente o que estaria em jogo no momento da revolução emancipadora.
Daí que os países que tentaram, e falharam, o projeto comunista sempre tenham conferido uma grande importância às letras, às artes e à musica clássica, ao partirem do pressuposto de que massificado o acesso a ideias e a estéticas mais exigentes, se criariam homens novos com as qualidades necessárias para liderarem uma sociedade capaz de se ir aproximando progressivamente da utopia igualitária.
Teria sido assim se do outro lado da trincheira não existissem igualmente ideólogos inteligentes apostados em frustrar esse percurso imparável para ao amanhãs que cantam. E uma das primeiras opções que se lhes surgiu foi a da exploração das fraquezas humanas, de cuja existência os utopistas nem equacionaram colocar na equação: a ambição, a ganância, a inveja, a intriga, a aversão a gastar as meninges…
Como dizia Almada Negreiros dos seus compatriotas: Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos faltam as qualidades.
Os defeitos foram explorados até à exaustão pelas televisões de que o grande capital se apossou nos processos de privatização dos antigos canais públicos e transformou numa janela aberta para o que de pior poderia atrair o pior lado dos espectadores: o voyeurismo.
Por um lado criou-se a apetência por um novo riquismo, quase sempre de tenebroso gosto kitsch, que leva as famílias a endividarem-se para festas de casamento como a que inicia o filme: com roupas espalhafatosas, em cenários da Disneylândia dos pobres e com muito recurso a fotografias e filmes demonstrativos de se ter vivido a experiência.
Que o animador da festa seja um obscuro participante no concurso Big Brother, recebido como se de um deus se tratasse, diz tudo da substituição dos reconhecidos heróis de outrora por estes personagens de pacotilha, que ganham protagonismo pelo duvidoso mérito de se terem apalhaçado perante as grandes audiências televisivas.
Garrone consegue um efeito perturbador quando, saídos do falso glamour da festa do casamento, os personagens quase tão feios, porcos e maus como os do memorável filme de Ettore Scola, regressam às suas casas decrépitas, para trocarem as roupas dos dias de festa pelos trapos de todos os outros.
Mas, por outro lado, a possibilidade de se fazer parte desse mesmo sonho fútil, acaba por ser o grande tema do filme, porque Luciano, o peixeiro, que garante a sobrevivência da família graças a expedientes de legalidade duvidosa, irá entrar num delírio irreversível sempre a acreditar na possibilidade de vir a ser selecionado para a próxima série do concurso. Daí que venda o seu lugar no mercado e se incompatibilize com a família, esperançado na mudança definitiva das suas dificuldades quotidianas.
Se uns apostam no euromilhões ou no totoloto, vivendo o sonho de se tornarem ricos de um dia para o outro, Luciano crê piamente na capacidade redentora do concurso televisivo. E essa é uma alienação incurável, destruidora… como o é para os milhões de lucianos, que desejosos de se salvarem a si mesmos, não conseguem perceber que a verdadeira salvação está na cumplicidade ativa de todos os lucianos, que o rodeiam.
Nesse sentido, embora não tão entusiasmante quanto o tema poderia pressupor, o filme é extremamente pedagógico. E tem a curiosidade de ser protagonizado por um ator, que vive o seu big brother na versão menos glamourosa de uma prisão italiana aonde cumpre pena de prisão pelo homicídio de traficantes de um gang rival do seu. Daí que o realizador tenha enfatizado, com razão, o seu olhar de candura e de perplexidade perante uma realidade de que há muito está afastado…
Não me admiraria, pois, que daqui a umas décadas este «Reality» seja visto com bastante interesse pelos historiadores do pós-capitalismo...