terça-feira, 9 de outubro de 2012

LIVRO: «Rio de Sangue» de Tim Butcher (4)


O salazarismo deformou-nos a correta visão da História dos Descobrimentos Portugueses, descrevendo-os como uma gesta heroica merecedora do mais enfático orgulho pátrio.
À conta dessa visão mistificadora fomos obrigados a decorar estrofes inteiras dos «Lusíadas» e a reverenciar uma bandeira e um hino cheio de conotações com esse suposto período de grandeza nacional.
Já em democracia, a mistificação da História de Portugal prosseguiu com esse lamentável fenómeno mediático chamado José Hermano Saraiva, que deixou discípulos hoje ativos, e igualmente tóxicos, como é o caso do inefável Rui Ramos.
A História que Tim Butcher aborda no seu excelente relato de viagem por todo o curso do rio Congo desde a região do Tanganica até à foz, é outra, completamente despida dessa carga mistificatória.
Porque conta como os portugueses foram tão determinantes num dos mais tenebrosos acontecimentos da relação intercontinental entre europeus e africanos: o comércio de escravos.
E, no entanto, de início as coisas até correram de forma bastante razoável: Diogo Cão descobre a foz do Rio Congo e regressa a Lisboa com quatro indígenas que foram instalados em aposentos do palácio real, foram tratados, alimentados e vestidos como príncipes e integrados na vida dos Portugueses. Aprenderam a língua, visitaram o reino, foram instruídos na educação cristã e batizados com toda a solenidade. (pág. 52)
D. João II estava persuadido que a melhor estratégia para garantir ali uma base de operações seria a persuasão e não a coação. Essa intenção acaba por infletir perante dois condicionalismos, o primeiro dos quais tinha a ver com o facto de o Congo não viver propriamente em paz: grupos de assaltantes provenientes das tribos vizinhas constituíam uma ameaça constante, atacando as aldeias, reivindicando território remoto e massacrando os súbditos do rei. (…) É seguro concluir que a boa vontade do rei em receber os portugueses se devia (…) ao desejo de adquirir o moderno armamento que os portugueses traziam com eles.(pág. 55)
O segundo condicionalismo surge da necessidade imperiosa de mão-de-obra nos campos de algodão e de cana do açúcar das Américas recém-«descobertas».
A caça ao homem arrancou em pequena escala no início da década de 1500, com os portugueses a comprarem aos guerreiros congoleses os escravos ocasionais, que traziam no regresso das suas incursões. Mas, com a subida do valor de mercado dos escravos, toda a dinâmica económica se alterou. Os bandos de assalto começaram a embrenhar-se no interior com o objetivo único de encher os navios enviados de Portugal para transportar escravos através do oceano Atlântico para o Novo Mundo. (pág. 56)
Entre finais do século XVI, quando começou o tráfico transatlântico de escravos e finais do século XIX, quando os países europeus finalmente o proibiram, a melhor estimativa aponta para doze milhões de africanos forçados a embarcar; e a foz do rio Congo, ao longo de todo esse período, foi uma das principais fontes de escravos. (pág. 58)
Quantas vezes fomos informados do papel dos nossos antepassados no indescritível sofrimento de milhões de seres embarcados em navios dedicados ao tráfico de escravos? Quanto do esplendor arquitetónico do período manuelino não foi remunerado com tal fonte de recursos?
É por isso que sinto algum nervoso miudinho ao ouvir discursos nacionalistas, que me remetem para a célebre frase de Samuel Johnson (o patriotismo é o último refúgio de um canalha), e têm na bandeira, no hino e numa versão muito filtrada da História pátria o seu fundamento.
Olhando para o passado, e seguindo o exemplo de outras nações, bem deveria o Estado Português pedir perdão pelos crimes cometidos com o seu tráfico negreiro...

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