quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FILME: The Artist - o trailer

FILME: «O Artista» de Michel Hazanavicius


Desconfiado dos êxitos fulminantes resisti até agora à visão de «O Artista», ciente de nele vir a encontrar um golpe comercial bem conceptualizado para conseguir os resultados, que lhe são conhecidos: boas receitas de bilheteira dos dois lados do Atlântico e uns quantos óscares e outros prémios cinematográficos à mistura.
Mas lá chegou o dia em que decidi dedicar um par de horas à sua apreciação. Para reconhecer a competência do produto e compreender a razão de ser do seu sucesso. E este não se poderá propriamente explicar pelo confronto dos públicos com a «novidade» de filme mudo a preto e branco  - senão, por esta altura, o mais recente 007 teria dificuldades em singrar no meio de uns quantos Murnaus ou Stroheims - mas porque a história em si apela ao imaginário inquieto de quem o vê neste mundo ocidental da segunda década do século XXI.
George Valentin concita fácil empatia ao constituir o duplo do espectador, que também vê o mundo a mudar significativamente à sua volta e não sabe como a ele se adaptar. Se o ator caído em desgraça se descobria sem voz para um cinema definitivamente sonoro, os nossos jovens licenciados, que emigram por não ter emprego, ou os muitos desempregados incapazes de encontrarem alternativa para garantirem a subsistência da família, só podem compreender na carne os dilemas do protagonista, apostado em acabar com o sofrimento mediante um tiro nos miolos.
Mas, tal qual aconteceu na época da Grande Depressão de 1929, o cinema surge com o lado mágico das soluções mirabolantes, personificadas na rapariga bomitinha e de bom coração e no cão esperto, que só não fala porque não calha num filme mudo.
É claro que Michel Hazanavicius revelou um hábil oportunismo ao conceber tal produto nesta altura e ao dar-lhe um cunho «artístico», que é tão equívoco, quanto postiço. Mas que resultou, lá isso não duvidemos. E merece ser caso de estudo nas universidades enquanto exemplo de produto inexistente no mercado e criado exclusivamente para nele se afirmar enquanto novidade recauchutada...

POLÍTICA: Ayn Rand, a apóstola do egoísmo, que inspira a direita americana

Na revista «Telerama» desta semana a jornalista Juliette Cerf publicou um texto muito interessante sobre Ayn Rand, a paladina dos ideais, que a direita, quer a norte-americana acolitada atrás de Romney e Ryan, quer a portuguesa atrás de Passos Coelho e Vítor Gaspar, querem levar por diante.
Quando fala em «refundar» o Estado e reduzi-lo ao mínimo, Passos Coelho está a mostrar-se um seguidor deste tipo de ideias, que rompem com a tradição compassiva da direita tradicional e apostam na imposição de uma desigualdade extrema entre os ricos e os pobres.
O que significa o agudizar de uma guerra social para a qual não pode haver quaisquer tibiezas: é tempo de as esquerdas saberem unir forças, porque a direita está a conspirar a várias vozes pelo seu objetivo (vide as inacreditáveis declarações de Fernando Ulrich!).
Fica aqui a tradução do texto de Juliette Cerf pela importância em melhor conhecermos os nosso inimigos...

Segundo uma testemunha só pelo olhar ela conseguiria fazer murchar um cato. As capas negras, as boquilhas em marfim e os emblemas em forma de dólar, fazem parte da lenda: desconhecida na Europa, Ayn Rand é idolatrada nos EUA.
Uma investigação da Biblioteca do Congresso sobre os livros mais influentes nos EUA, classificam o seu Atlas Shrugged (1957) em segundo lugar logo depois da Bíblia.
Tão longe e tão próximos: é que Ayn Rand não se enquadrava nos preceitos judaico-cristãos. Segundo ela um homem (digno de o ser, claro!) só deveria viver por e para si mesmo. Como? Utilizando a razão, incompatível com a fé, seguindo o único interesse racional em forjar a sua liberdade e recolher a parte leonina no sistema ideal, o capitalismo fundamentado na liberdade plena dos mercados.
No mundo randiano os empreendedores são incensados enquanto heróis dos tempos modernos em que o egoísmo é a virtude suprema. A única ética aceitável. Porque o altruísmo, que torna o homem dependente dos outros, é uma “noção monstruosa. É a moralidade dos canibais que se devoram uns aos outros”, defendia Rand.
Brilhante e voraz sacerdotisa da liberdade, inclusive nas questões sociais, Ayn Rand forneceu argumentos morais e antropológicos ao mais exacerbado individualismo. A sua “filosofia para viver com os pés assentes no chão”  é a legitimação do liberalismo mais radical, tendo inspirado Alan Greenspan, o seu mais fiel acólito que, nomeado por Ronald Reagan, dirigiu a Reserva Federal durante dezasseis anos.
Para ela Reagan era um frouxo, Kant um hippie e Kennedy um fascista!
“Trinta anos depois da sua morte, a influência de Ayn Rand nunca foi tão grande. Nunca. Contrariamente ao que pensam alguns dos seus detratores , que querem desvalorizar a sua herança, o seu extremismo provocador não se situa nas margens. Está bem no centro do debate nacional, explica Gary Weiss, um jornalista que acaba de publicar um ensaio intitulado Ayn Rand Nation.
Basta ligar a televisão: Mad men, Os Simpson, South Park e Daily Show falam dela. Lê-se a imprensa: o New York Times e o Wall Street Journal discutem as suas ideias. Weiss acrescenta: “Através dela está em causa uma luta pela alma americana.
Nascida na Rússia, com o nome de Alisa Rosenbaum, Ayn Rand almejou intensamente essa mesma alma americana, enquanto antídoto contra o comunismo, em cujos ideais tinham sido confiscados o apartamento e a farmácia da sua família em São Petersburgo em 1917. Apaixonada pelo cinema, Alisa inscreve-se no Instituto Técnico das Artes Cinematográficas em 1924. Em 1926 embarca sozinha para a América e dirige-se a Hollywood, aonde cai em graça a Cecil B. DeMille, que lhe dá a alcunha de Caviar e a contrata como figurante.
Torna-se argumentista e dramaturga, publicando dois romances - The Fountainhead (1943) e Atlas Shrugged (1957) - que lhe dão fama em Nova Iorque.
 Nos anos 60, defende uma filosofia dita objetivista nas universidades americanas. Segundo o republicano Romney existe um braço de ferro entre a mão invisível do mercado contra a pesada mão do Estado. As duas visões da América que se confrontam no presente combate eleitoral nunca se opuseram com tanta radicalidade. Nomeadamente quanto ao papel do governo e do indivíduo no grupo, temas privilegiados nos textos de Ayn Rand.
Sacrificar o indivíduo (criador) à sociedade (predadora)é, para ela, um crime contra a humanidade. E o Estado torna-se no pior inimigo do homem se não for contido, pois só tem que fornecer três serviços: a polícia, o exército e a justiça.
 Uma leitura apressada das ideias de Ayn Rand inspiraram Paul Ryan, o candidato a vice-presidente republicano. Adepto dos cortes orçamentais e da redução de impostos, este ultraconservador que preside à comissão do Orçamento na Câmara dos Representantes quer reinjetar o sonho americano no flácido ventre de uma América em perda de velocidade: “Se devesse prestar homenagem a alguém por me ter estimulado a entrar na política seria Ayn Rand. Porque não se iludam: o combate que travamos é o da luta do individualismo contra o coletivismo.” disse a uma plateia constituída por outros discípulos de Rand.
A Segurança Social? Coletivista, e portanto a ser inteiramente privatizada.
O ódio à religião professado por Rand? Demarcar-se dele custe o que custar.
“Antes de minimizar a sua influência por causa do seu ateísmo visceral e das suas posições pró-aborto, muito incómodas neste período eleitoral. Paul Ryan elogiou Ayn Rand no Atlas Society em 2005, por ocasião do centenário do seu nascimento”, lembra David Kelley, filósofo fundador dessa organização criada em Washington para divulgar as ideias objetivistas e fazer concorrência ao Ayn Rand Institut da Califórnia.
“Estou convencido que o pensamento de Rand é aberto e só ganha em ser debatido.”, acrescenta. Prova dessa “abertura” é o facto de nos esperar no Hotel Intercontinental aonde assiste à Conferência do Atlas Network, uma organização que milita por uma sociedade  “livre e próspera”, que abomina o Estado Social, esse “cancro satânico” que limita a liberdade individual e fomenta políticas prejudiciais ao futuro. “O problema dos EUA de hoje não é a oposição entre ricos e pobres, mas a dos atores (makers) contra os parasitas (takers), os que se responsabilizam por si mesmos e os que não se mostram capazes disso mesmo, nem o tentam fazer.”
Este discurso lembra alguma coisa? Claro que remete para as declarações de Mitt Romney perante os ricos financiadores da sua campanha, ao vilipendiar os 47% de americanos assistidos  pelo Governo, quase não pagando nenhum imposto de rendimento e acomodados à sua mentalidade de vítimas.
Jennifer Burns, professora de História em Stanford, autora de Godess  of the market, Ayn Rand and the American Right, comenta esse discurso: “Não tenho a certeza em como Mitt Romney tenha lido Ayn Rand, mas do que não duvido é que essa visão dos 47% subscreve essa divisão enunciada por Rand entre os produtores (producers) e os espoliadores (looters). (…) Rand considerava imorais os programas sociais do governo, destinados a roubar os que produziam para ajudar aos improdutivos. A sua filosofia é uma droga iniciática para a direita americana.”
Do lado democrata, “todos os discursos do Presidente repudiam as ideias individualistas de Ayn Rand.” explica o ensaísta Gary Weiss. Orador eloquente, que muitos compatriotas equiparam a um perigoso «socialista europeu», Barack Obama reescreveu o grande mito do self made man solitário, ao mesmo tempo que acentuava os laços, que ligam os americanos.
 “Se tiveram sucesso é porque alguém vos ajudou no passado. Um excelente professor. Alguém ajudou a construir este incrível sistema americano que é o nosso. Alguém investiu nas estradas e nas pontes. Se vocês têm uma empresa, não foi porque a criaram. Alguém a fez anteriormente.” ousou declarar o Presidente provocando, antes dos 47% de Romney, a primeira controvérsia randiana da campanha.
Mas, ao rejeitar tão virulentamente a comunidade, depois de ter visto os seus bens confiscados  pelos bolcheviques, Ayn Rand não constituía um verdadeiro contrassenso a um dos principais fundamentos da sociedade americana - o de se definir enquanto comunidade familiar, religiosa ou étnica?
Esse  esquecimento é voluntário, porque o seu objetivo era o de criar uma nova ética, estritamente individualista, em que o bem e o mal não fossem determinados pelas relações interpessoais ou sociais, mas pela única integridade de um indivíduo para consigo mesmo. É por essa razão que a leitura de Ayn Rand é frequentemente vivida como uma espécie de conversão, um acontecimento que forja uma visão do mundo!”.
“A leitura de Ayn Rand mudou a minha vida“, afirma um entusiasmado Antoine Bello, romancista e homem de negócios franco-americano que vive a norte de Nova Iorque. “Rand tem um entendimento muito profundo do mundo dos negócios, dos circuitos de decisão. A exemplo dos seus heróis, eu vivi uma metamorfose, passei a ver o mundo através de um prisma diferente: os empreendedores são considerados como carrascos, quando são vítimas, sobretudo em França aonde são vistos como uns párias. São eles os heróis, os que assumem todos os riscos… Antes de redistribuir a riqueza, é preciso criá-la.”
Esta inversão das relações de classes em relação ao marxismo é tipicamente randiana. Em Atlas Shrugged, Ayn Rand inverte a lógica dos «Tempos Modernos» de Chaplin e mostra os pobres a explorarem os ricos. Trata-se de um livro modelo para o Tea Party, movimento anti-Estado e anti-impostos surgido em 2008 como reação à crise económica e à política de Obama, designadamente contra a sua reforma na Saúde.
Essa ficção é para eles uma espécie de profecia do que acontece quando o governo é demasiado intrusivo: os produtores deixam de trabalhar e a economia afunda-se”, explica Jennifer Burns.
Ficção? Ayn Rand ~começou por sonhar os EUA através do cinema. Como o sugeria John Ford, quando a lenda ultrapassa a realidade, opte-se pela lenda...



POLÍTICA: Intervenção Deputado João Galamba



Quais destas palavras não percebe o Gaspar?

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

DOCUMENTÁRIO: «E.L. Kirchner - Recto, Verso» de Barbara Dickenberger (2010)


É uma característica singular, que se associa à obra de E.L. Kirchner: quadros pintados dos dois lados da tela em períodos distintos da sua carreira de pintor.
Num total de cerca de mil quadros, 130 apresentam essa originalidade. Que levam alguns a interrogar-se se ele teria dupla personalidade. Ao que ele poderia corroborar com expressão dele em tempos escutada, quando já vivia em Davos, na Suiça: “É uma sorte os quadros terem todos duas faces!”
Mas o essencial da obra do pintor alemão, nascido num ambiente burguês em 1880, tem a ver com a diversidade e os contrastes dos temas, ora associáveis a um bucolismo rural, ora à vida boémia das grandes cidades.
Na primeira fase da obra - a que começa com o novo século e se prolonga até à Primeira Guerra Mundial, Kirchner vive intensamente a boémia berlinense com um grupo de companheiros de geração (que crismavam de «A Ponte» o seu movimento artísticos) e com sucessivas amantes, que servem de modelos aos seus quadros.
No entanto a vida militar quebra algo de fundamental em si: deprime, torna-se toxicodependente e solitário.
Nos Alpes suíços encontra refúgio à medida das suas necessidades, pintando paisagens e aprofundando conceitos artísticos, que nunca chegam a tomar a forma de uma estética bem definida. A sua obra vai-se, porém, estilizando, numa permanente intenção de verter em forma artística a exacerbada natureza que presencia à sua volta.
Mas chega a década de 30, que faz emergir o fenómeno nazi para cujos líderes os quadros de Kirchner representam o paradigma da «arte degenerada». O que lhe vale nova e profunda depressão, seguido do suicídio em 1938.
Quanto ao seu legado de obras dos dois lados da tela , há quem o explique enquanto recurso de força maior, quando Kirchner ficava isolado pela neve na sua casa alpina e já não possuía mais telas virgens para cobrir de pintura. Seria essa a razão de ser dessa curiosa singularidade...

POLÍTICA: A inspiradora do extremismo neoliberal


As Edições Seuil acabam de publicar um ensaio da filósofa Nicole Morgan em que ela aborda os modelos de pensamento da direita  norte-americana e de quem lhe inspira as teses mais radicais.
Essa inspiradora é Ayn Rand, desaparecida há trinta anos, mas promovida a principal referência ideológica do Tea Party ao defender que os pobres são uns parasitas e o governo federal o mais lapidar exemplo do mal absoluto. Exatamente o que defende um dos seus mais conhecidos e autoproclamados discípulos, Paul Ryan, que concorre ao cargo de vice-presidente nas próximas eleições para a Casa Branca.
O entusiasmo do parceiro de Mitt Romney com as teses de Rand é tal que exige a leitura dos livros dela por todos os elementos da sua equipa de assessores.
A Ryan ou à alta finança de Wall Street de pouco importa o ateísmo puro e duro de tal inspiradora, porquanto dela retém o que, exclusivamente, lhes interessa: a defesa de um mercado sem regulamentações nem quem as aplique já que tass entidades são constituídas por funcionários públicos parasitas, que sugam o sangue dos empreendedores, os ”verdadeiros” e “legítimos” criadores da riqueza.
Os paladinos da globalização adoram Rand pela caução intelectual por ela dada às suas estratégias porque ela  definia os empreendedores como os agentes do “bem comum” para que tenderia a humanidade.
Estamos num momento histórico em que a crise económica aumentou os ressentimentos dos ricos contra os pobres, acusados de matarem o crescimento.
Exerce-se sobre eles um ódio frio, que ainda não se traduz na defesa do extermínio violento, mas é organizado em torno da pseudociência representada pela economia ultraliberal.
Trata-se do aparente triunfo do extremismo e do simplismo ideológico. Um ódio frio, que levou, por exemplo,  os lobistas da Câmara de Comércio a pedirem a revogação da lei, que permitia aos bombeiros do 11 de setembro obterem cuidados de saúde de longa duração de que são extremamente carentes pelas emanações tóxicas por eles enfrentadas.
E foi de Ayn Rand, que Michael Douglas retirou a frase «a ganância é a maior das virtudes», que exprime no «Wall Street» de Oliver Stone.
São essas teorias, que a coligação PSD/CDS está a querer aplicar em Portugal, mas com o insucesso já à vista. É que, ao contrário dos norte-americanos, os portugueses estão melhor defendidos do arsenal de estímulos de alienação usados por essa criminosa corrente do pensamento político. Mesmo apesar dos esforços de D. José Policarpo nenhuma igreja consegue conter a indignação mediante o apelo ao conformismo, nem os conceitos de socialismo foram demonizados o suficiente para que deles se dissociem os que recusam servir de carne para canhão dos representantes nacionais dessa ganância obscena.
É por isso que  importa manifestar o repúdio por doutrinas, que transformam as maiorias em escravos de uma elite sem escrúpulos, cujos intentos deverão ser criminalizados enquanto verdadeiros atentados à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Neste momento em Haia existem acusados de genocídios, que fizeram um número muito inferior de vítimas ao de muitos dos “respeitáveis” políticos e empresários, que surgem a toda a hora nos telejornais a darem como perfeitamente legítimas as suas aspirações a uma ainda maior exploração dos que já pouco têm.

FOTOGRAFIA: "L'Annonce de la mort de Gandhi par Nehru» de Henri Cartier-Bresson (1948)


Cartier-Bresson acabava de sair da Birla House aonde Gandhi lhe dera uma entrevista. De súbito ouve um tiro e volta atrás. E junta-se à multidão concentrada junto aos portões da residência.
Aparecem então o primeiro-ministro indiano Nehru e um oficial inglês para anunciarem a morte de Gandhi. Passa um táxi e pára. Ele salta então para o estribo e consegue tirar três fotografias. Esta é uma delas e revela-se notável, porque está bem enquadrada e com a devida composição até mesmo no ligeiro desfoque capaz de produzir um halo com os reflexos suscitados pela objetiva pouco aberta e com pouca luz.
São igualmente expressivos os rostos dos indianos, que parecem esperar por um cristo como se tivessem acabado de emergir de uma pintura italiana.
Esta fotografia é uma obra-prima porque revela o pintor por trás do fotógrafo. Lembra os grandes representantes do tenebrismo italiano do século XVII e tem como personagens centrais os dois mundos então presentes na Índia, quando um passava o testemunho ao outro. A coexistência de ambos nesse instante dramático realça o carácter trágico da imagem.
É ainda um testemunho histórico e jornalístico insubstituível, porque Cartier-Bresson era o único fotógrafo ali presente naquele momento.

FOTOGRAFIA: "Derrière la Gare Saint-Lazare", Henri Cartier-Bresson (1932)


É o ícone absoluto de Cartier-Bresson. A fotografia que reflete em simultâneo o seu génio, talento e conceitos.
Nesta imagem ele fixa logo à partida a sua arte e forma de a expressar. Que permanecerá constante ao longo de toda a sua vida: a de uma conceção geométrica do espaço e do sentido do movimento. É a composição da imagem realizada num instante ultrarrápido.
Em geral ele nunca encenava o que fotografava, aproveitando o instante decisivo de quando a ele assistia.
Mas aqui ele captou tal instante, porque sabia que alguém acabaria por saltar por cima da poça de água. E, ademais, num detalhe só apercebido na impressão e só possível quando as imagens se deixam habitar pela inspiração (e não tanto pela coincidência!) deteta-se ao fundo o cartaz com uma bailarina cujo passo é simétrico ao do saltador em primeiro plano.
Esta fotografia acaba por se revelar um autêntico bailado com Henri Cartier-Bresson como coreógrafo.
Pierre Assouline, Arte magazine

FOTOGRAFIA: "Funérailles Shinto de l'acteur de Kabuki Danjuro" de Henri Cartier-Bresson


Se tivesse de ilustrar o que é o sentido da organização plástica, da geometria e do espaço em Cartier-Bresson, seria esta a fotografia escolhida. Primeiro por ser comovente. Pode-se ver nela toda a dignidade dos japoneses perante o sofrimento. Depois por ser de uma incomparável perfeição na organização das massas, das linhas, não numa perspetiva de paisagem, mas quanto à distribuição dos corpos, dos rostos e das mãos.
A divisão dos símbolos na imagem atinge um tal requinte, que nos deixa boquiabertos. Porque quase parece que Cartier-Bresson coreografou as personagens. O que, obviamente, não aconteceu tornando fascinante a fotografia.
Da geometria deveria salientar-se o rigor, o frio, o desencarnado. Ora, da sua geometria esmeradamente rigorosa, destaca-se a emoção.
Pierre Assouline, Arte Magazine

FOTOGRAFIA: "Rue de Vaugirard, Paris, 1968" de Henri Cartier-Bresson


Nesta fotografia confrontam-se dois mundos sem se compreenderem um ao outro. Nisso reside o seu maior interesse. Tanto mais que a radicalidade desse confronto é verdadeiramente  refrescante.
Ela ilustra na perfeição o espírito do Maio de 68 e o choque cultural subsequente. Toca-me também porque me faz recordar o meu avô. Ele tinha este aspeto com o fato e o chapéu tal qual se usavam há muitos anos.
Como sempre a impressão é notável com uma certa doçura no equilíbrio dos negros, nos brancos e nos cinzentos.
Uma grande parte do talento de Cartier-Bresson reside no cuidado dessa impressão. Aqui o equilíbrio é voluntário, como se os dois mundos valessem por si sem julgamentos, quer sobre o antigo, quer sobre o que se seguiria de acordo com a inscrição provocadora na sua promessa de liberdade.
Proveniente de  um meio burguês Cartier-Bresson sempre se apresentou como um libertário. Pelo que o slogan só poderia agradar-lhe...
Pierre Assouline, Arte Magazine

domingo, 28 de outubro de 2012

POLÍTICA: Com discursos tolos mais vale satirizar!


Em tempos que já lá vão - ou que pelo menos assim se julgava! - o “venerável” almirante distraía o  país com a originalidade dos seus tolos discursos.
Passos Coelho demonstrou hoje quão próximo se coloca da inspiração de tão singular personalidade. As palavras por si proferidas nas Jornadas Parlamentares dos partidos da coligação ilustram a indigência mental que o caracteriza, a incapacidade para compreender como consegue dizer uma coisa e exatamente o seu contrário:
Quem tem um carro em segunda mão para vender, com três ou quatro anos de uso, tem obrigação de certificar o carro que vai vender para não enganar quem o vai comprar. Quem no mercado se encontra muitas vezes não pode enganar o parceiro. E se não queremos enganar aqueles que querem investir em Portugal nós temos que dizer quais são os problemas que temos, as dificuldades que ainda nos falta vencer, tudo feito com muita honestidade, não para prestar contas mas para mostrar que sabemos o terreno que pisamos. Mas, claro, ninguém espera, quando vende um carro com três ou quatro anos, que o carro esteja como novo. Se quando o vendemos começamos por explicar que tem três ou quatro anos e que vai precisar de fazer mais uma revisão e que tem aqui uma série de defeitos - que é normal que os carros com três ou quatro anos tenham - aqueles que nos vão comprar perguntam se a nossa vontade é mesmo vender.
É verdade que, às vezes, vale a pena olhar esta realidade pelo crivo da ironia inteligente, que nos faz rir e morde fortemente nos adversários políticos. Vem isto a propósito do post  publicado por Augusto Santos Silva no facebook e em que comenta a desdita do ministro Relvas:
A intriga que domina o dia, lançada pelo Expresso - "Relvas teve equivalências a cadeiras que não existiam" - deixa-me furioso:
1. Arre, já não chegou o homem ter estado debaixo de água umas boas 8 semanas - e nós a suspirar de saudades. Mal põe a cabeça de fora - e nós exultantes - leva logo com um tiro de artilharia. Haja decoro!
2. E vêm-nos falar de problemas com míseras cadeiras - de um homem cujo percurso de vida daria em qualquer outro sítio do mundo direito a poltronas e sofás!
3. E queriam que ele tivesse equivalência a cadeiras que já existiam antes! Como queriam que existissem, se ele é um inovador, um homem à frente do seu tempo?
4. E, depois, é algum crime ter equivalência a cadeiras pós-existentes? Não ouviram o Ministério Público dizer que não? Tenham mas é juízo e paguem o IRS!
5. É isto o que verdadeiramente trama o país: estar cheio de invejosos.
Claro que só pude comentar estas palavras com um eu pecador me confesso!.
Mas neste tempo em que tantos motivos nos desalentam, o riso é uma arma viral. E é dentro desse mesmo espírito que, no «Arrastão», o Sérgio Lavos comenta a notícia de lucros significativos em toda a banca nacional. A crise, de facto, não é para todos!
É uma maravilha ver todos os bancos portugueses a apresentar lucros brutais este ano. Fico feliz por mim, e por todos os portugueses, porque o esforço foi nosso, foi coletivo, em prol do bem comum (dos banqueiros): não só foram vários milhares de milhão de euros diretamente para a recapitalização de algumas destas instituições, como estas estão a lucrar com a compra da dívida portuguesa (recebem dinheiro do BCE a 1% e emprestam ao Estado português, a 5, 6 e mais).
Ver dois grupos de portugueses satisfeitos - os acionistas que recebem dividendos e os administradores que recebem bónus - deve encher de orgulho o povo português. Nós, os que sofremos na pele as medidas de austeridade, estamos cá para isso mesmo. Não queremos ver os bancos pelas ruas da amargura. E se tudo falhar, se nada sobrar depois de transferidos todos os lucros e dividendos para off-shores, também estaremos cá para vos salvar, como aconteceu com o BPN. Não têm nada de agradecer, não fazemos mais do que a nossa obrigação.
Mas, abstraindo da sátira, é elucidativo que o Ministério Público esteja a investigar suspeitas de tráfico de influências na privatização da EDP que, recorde-se, era o tema da conversa telefónica entre Ricciardi e Passos Coelho e que idêntica análise estão a ser feitas aos processos da REN e da CIMPOR.
Por tudo quanto está a acontecer importa subscrever as palavras de Daniel Oliveira, mesmo não sendo provenientes de dentro do meu partido. Mas acredito que existam muitos socialistas a imitarem-me nesta posição: 
Sabemos o que queremos de um governo de esquerda com forte apoio popular. Falta saber como conseguir que esse governo exista. Faz-se caminho numa alternativa viável à destruição económica de Portugal. Tem de se fazer o caminho para que ela seja politicamente maioritária. É esse o desafio que se tem de fazer a todos os partidos de esquerda. Sabendo que o memorando da Troika é o programa oposto ao do crescimento e do emprego.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

LITERATURA: a enésima despedida de um nobelizável frustrado!


Nunca tal deveria ter ocorrido, mas foi o próprio Lobo Antunes quem criou a dicotomia entre quem lhe aprecia a prosa ou quem lhe prefere a de José Saramago.
No meu caso a escolha de campo foi sem qualquer dúvida: prefiro mil vezes os romances do autor de «O Memorial do Convento» aos floreados umbiguistas do antigo psiquiatra do Miguel Bombarda, cujo interesse maior se quedou pelos seus dois primeiros romances (“Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas”).
Mas o facto de lhe detestar a personalidade equívoca não me impede de ir lendo o que vai escrevendo, mormente as crónicas na «Visão». Ora, na semana passada, ele anunciou pela enésima vez o adeus à escrita.
Já o fizera antes, mas assim continua com um texto onde é justo, porém, salientar o epílogo com uma interrogação pertinente. Quando reconhece que, de cada vez que ouve um quarteto de Beethoven, é como se fosse a primeira vez. Como se pode agarrar, digam-me lá, o que constantemente muda?
Já que ele dá por praticamente terminado o seu trabalho e nos despacha com um Governem-se se forem capazes, libertemo-lo enfim do que parece ser um pesado fardo para nos sobrecarregar de romances indigestos e deixemo-lo com as excelentes composições do brilhante Ludwig. Com votos para que não fique surdo!

HISTÓRIA: quando o Apocalipse quase aconteceu


Há cinquenta anos o 27 de outubro também calhou a um sábado. Mas esse foi o dia em que o planeta escapou à justa a um apocalipse nuclear. Foi aquele que um conselheiro de John Kennedy classificaria de “o dia mais perigoso da história da Humanidade”.
Vistos à distância e lidos os documentos mais recentemente tornados públicos depois de cobertos pelo segredo de Estado, compreende-se que a guerra termonuclear teria causado dezenas de milhões de vítimas e destruído toda a civilização moderna.
Treze dias antes aviões espiões americanos tinham descoberto mísseis soviéticos instalados em território cubano a menos de 200 quilómetros das costas da Florida.
Pressionado pelos acontecimentos o presidente Kennedy lança um ultimato a Moscovo por interposição de uma alocução televisiva: ou Khroutchev retira essas armas da ilha de Fidel de Castro ou a guerra tornar-se-á uma inevitabilidade.
Enquanto o mundo fica em suspenso, os americanos avançam com o bloqueio naval à ilha das Caraíbas e põem bombardeiros B52 carregados de ogivas nucleares a sobrevoarem os céus europeus, apenas à espera do fogo verde da Casa Branca para as lançarem nas grandes cidades soviéticas.
Nessa contagem decrescente, os dois K’s sofrem pressões contínuas: o Pentágono incita  Kennedy a iniciar o ataque com a destruição dos mísseis antes deles levantarem voo, enquanto Khroutchev tem dificuldades em conter Fidel Castro , que acreditava piamente na inevitabilidade da agressão imperialista.
Pelo meio vão ocorrendo episódios menores - um avião americano, que entra no espaço aéreo siberiano ou um submarino soviético atacado com cargas de profundidade por navios americanos - que poderiam ter servido de gatilho para a decisão fatal.
Valeu ao mundo que, quer Kennedy, quer Khroutchev perceberam estar perante uma daquelas situações em que vale a pena apostar nas concessões como forma de salvar o essencial. E ambos recuam: os mísseis russos acabam por ser removidos e a Casa Branca compromete-se a não invadir  Cuba.
Mas, quem viveu esses dias teve a certeza de ser muito fácil provocar uma catástrofe se se põe um qualquer lunático a comandar um incomensurável poder militar.

POLÍTICA: Juízinho não é, de facto, o que é preciso!


Soubemo-lo por Durão Barroso: se a troika prolongou por mais um ano o suposto programa de reajustamento da dívida soberana portuguesa não foi por solicitação do governo de Passos Coelho - mesmo este sabendo do desvio colossal que tem nas contas do défice de 2012 - mas por iniciativa da Comissão Europeia.
Confirma-se o que já se sabia: nas reuniões com os parceiros europeus, Passos Coelho não abre a boca e Vítor Gaspar, quando fala é para descrever um cenário ficcional sem qualquer semelhança com a realidade.
Não admira, pois, que o caminho para o abismo se acelere e haja tantos jovens a fugirem para outras paragens por muito que nelas não divisem nenhuns el dorados. Como comenta Viriato Soromenho Marques no “Diário de Notícias” é a fuga legítima, por parte de quem tem força e coragem, do navio com o casco perfurado em que a política do Diretório, e dos seus delegados em Lisboa, transformou Portugal. 
Mas esta dramática sangria do capital humano do país é acompanhada de uma apreciação revoltantemente salazarenta por muitos dos nossos governantes. Esta noite, num dos telejornais, o responsável por um dos organismos destinados a pressionar mais jovens para a emigração, não tinha um pingo de vergonha na cara ao alegrar-se com o sucesso da sua ação já que os envolvidos revelavam uma “grande humildade”.
É triste reconhecê-lo, mas o fascismo não foi erradicado da mentalidade de muita gente hoje sentada nos lugares do poder. E, tal como então, consideram que - parafraseando Alexandre O’Neil - neste país no diminutivo, juizinho é que é preciso.
O escritor Baptista Bastos abordava, precisamente, a tenebrosa persistência desse lado mais negro de se ser português, ao evocar a intervenção da atriz Maria do Céu Guerra num dos programas televisivos da parte da tarde. Aí ela evocava essa inexplicável assumpção da culpa dentro de cada um de nós, como se tivéssemos qualquer responsabilidade nos desvarios cometidos pelos responsáveis políticos e nos fosse exigida a inevitável expiação: Somos "culpados" de querer ser felizes, de ambicionar viver melhor, de existir com dignidade e decência, de ter possibilidades de escolhas afirmativas. Esta nossa educação para o remorso é um dos graus da servidão exercida pelos dominantes e associa-se ao conceito religioso do pecado, que nos persegue e manieta.
Existe, no entanto, um limite para o que os portugueses estão dispostos a passar. E Pedro Carvalho lembra no “Económico” que Gaspar sabe que a tolerância dos portugueses está a esgotar-se e que o seu multiplicador de credibilidade disparou para 2. Por cada euro adicional de austeridade que anuncia, a credibilidade do ministro cai o dobro.
E o fracasso, lembra-o Pedro Silva Pereira no mesmo jornal, é uma evidência anunciada: o Governo ficou com um duplo caderno de encargos entre mãos, claramente condenado ao fracasso e simplesmente inaceitável por qualquer pessoa de bom senso: fazer um orçamento para 2013 que será insuportável do lado da receita e fazer um orçamento para 2014 que será impraticável do lado da despesa. Não há economia, nem Estado Social, que resistam a um programa louco como este. Nem creio que haja Governo, em democracia, que o possa executar.
Estamos perante um fogo de barragem à classe média mas - lembra-o Daniel Oliveira no “Expresso” - , sobretudo, aos mais pobres, cada vez mais empurrados para a insustentabilidade de uma sobrevivência cada vez mais impossibilitada: Sim, é verdade que estamos a assistir a um ataque sem precedentes à classe média. Mas seria bom não nos fecharmos no nosso pequeno cantinho. O ataque aos mais pobres é ainda mais brutal. Porque, neste caso, estamos a falar da sua própria sobrevivência física.
Esperemos que  não leve muito tempo a devida resposta dos portugueses a quem os continua a julgar humildes e dispostos a ainda mais sacrifícios...