segunda-feira, 10 de setembro de 2012

LIVRO: «A justiça de Yerney» de Ivan Cankar


«A Justiça de Yerney» foi escrito por Ivan Cankar no mesmo ano em que é o candidato socialista derrotado nas eleições do distrito de Zagorje, quando a sua Eslovénia natal estava integrada no vasto Império Austro-Húngaro. E sente-se tal posicionamento político nesta história de um velho feitor expulso da casa, que construíra e das terras que plantara, tão só ocorre o funeral do patrão Sitar. De facto, o filho e herdeiro alimentava há muito o plano de expulsar aquele que fora o lugar tenente do pai, que o forçara a respeitá-lo, a aceitar-lhe as ordens.
É claro que Yerney não consegue compreender como, após quarenta anos de tanto suor ali semeado, pode ser assim escorraçado como um cão vadio, condenado a morrer de fome numa valeta. Por isso parte em busca de justiça, primeiro nas redondezas, depois junto dos juízes do tribunal de Liubliana, e inquebrantável na sua determinação, chega a Viena para apresentar o seu caso ao imperador.
Claro que, pelo caminho, vai contando o seu caso a muitos companheiros de viagem que riem da sua inocência: aonde se viu alguma vez a razão ser conferida ao servo contra o patrão?
À medida que vai subindo na hierarquia dos interlocutores a quem procura, as consequências começam a assemelhar-se a um verdadeiro Calvário: em vez de recebido com risos, Yerney vê-se insultado e preso.
Quando conclui que nem os homens, nem Deus, o ouvem, ele toma a atitude mais lógica: executa a justiça por suas próprias mãos ateando o fogo à casa, ao celeiro e aos campos de Toni Sitar. Que manda agredir o antigo feitor até à morte, mas que não consegue evitar o tremendo braseiro em que se consome parte não despicienda da sua fortuna.

Excerto: 
A série de pensamentos de Yerney era penosa... «Além disso, apesar de tudo, seria possível que na nascente — a origem límpida — não brotasse água pura; que o sol brilhante não desse luz; que da própria origem da qual procede a justiça não houvesse justiça?»
O caminho era longo: demasiado longo para Yerney, velho e gasto. Foi a pé por aldeias estranhas; através de uma região desconhecida. Um dia à tardinha, quando o crepúsculo caía nos campos, as suas pernas cederam e foi obrigado a sentar-se num marco à beira da estrada. Aconteceu que nesse preciso momento chegou um jovem vagabundo. Caminhava descalço; estava empoeirado; talvez esfomeado, também; mas os olhos cintilavam de boa disposição.
«Onde ides, chefe?»
«Ver o Imperador.»
«Oh!... a cidade onde vive o Imperador é ainda bas­tante distante, e as suas pernas estão velhas e cansadas. Ainda que caminhe noite e dia irá demorar uma semana a chegar lá.»
«Tenho de lá chegar antes de morrer.»
«E porque ides ver o Imperador?»
«Para lhe pedir que me faça justiça e que repreenda e puna os injustos que escarneceram de mim.»
Olhando tristemente para o velhote débil e curvado, o rapaz abanou a cabeça.
«Nunca irá conseguir, meu amigo. É muito difícil chegar até ao Imperador.»
«Difícil? Porquê?» admirou-se Yerney. «O Imperador é a fonte da justiça; onde é que ela deve estar se não com ele? Achas que eu iria pedir pão a pedintes? Já fiz disparates desses na minha cegueira e não condeno aqueles que se riram de mim por esse motivo. Agora irei ter com o homem que trata da justiça dos pobres e dos famintos.»
«Não irá conseguir vê-lo, chefe.»
«Porquê? Está fechado à chave? Está cercado de muros ou portões que chegam ao céu?»
«Está guardado por soldados que não permitem que ninguém se aproxime dele.»
«O quê? Então, são mais poderosos que o Imperador? São os senhores do Senhor? O que dizes, na ignorância da tua juventude?... Comecei à procura da justiça; encontrá-la-ei da parte do Imperador. Ele distribui justiça e misericórdia — como poderia fazê-lo através de portas trancadas, através de paredes e portões? Vou continuar, pois Deus deu-me a esperança de que não irei desanimar antes de chegar ao fim da minha jornada.»
O jovem sentiu uma tristeza profunda apoderar-se do coração ao ouvir as palavras de Yerney.
«Chefe, o caminho é longo e árduo; através de altas montanhas e de planícies sem fim. Já venho a caminhar há um mês, com uns escassos períodos de descanso — e olhe para as minhas pernas novas. Você já está sentado num marco — praticamente a cem metros de casa; cem metros mais à frente cairá na vala à beira da estrada. Pegai na vossa última moeda de prata, meu amigo, e ide numa car­ruagem de comboio. Quando chegardes à cidade imperial, quando sentirdes a mais profunda das tristezas, então lembrai-vos de mim. Encontrareis mais depressa um tesouro ao luar do que a justiça em pleno dia.»
Com estas palavras o jovem esfarrapado seguiu o seu caminho e Yerney seguiu-o com o olhar abatido.
«Tão jovem, tão bondoso», pensou. «Aquele jovem já está curvado sob o peso da injustiça. Onde estará a sua mãe, onde estará o seu pai? Empurrado para longe de um lado para o outro; foi atirado ao mundo como uma folha em que ninguém repara; que ninguém se preocupa em não pisar... Talvez ainda pense na mãe, que chora por ele, pois disse: "Não há justiça no mundo, nem sequer junto do Imperador!"»
Quando Yerney se ergueu sentiu-se doente e assus­tado, pois sentiu as pernas imóveis como uma pedra, os joelhos dormentes e mal podia caminhar.
«Não andei mais do que costumava andar da casa da quinta até aos campos — cem metros mais e cairei.»
Agora, transportava aos ombros não só a trouxa mas também a injustiça. E aqueles longos dias de sofrimento pesavam-lhe; e pesavam-lhe muito — tanto quanto meio mundo.
Já estava escuro quando Yerney entrou numa estalagem nos arredores duma aldeia. O estalajadeiro mirou-o desconfiado, e a mulher saudou-o de mau humor. Doente e empoeirado, mais parecia um pedinte que a uma hora tão tardia não pediria senão um braçado de feno onde pudesse descansar a cabeça no sono — ou talvez na morte.
«Não olheis para mim desse modo; não tenhais medo», disse, pousando algumas moedas de prata em cima da mesa, «sou um caminhante em busca da justiça do Senhor, uma vez que não a consegui dos servos.»
«Para onde ides?» perguntou o estalajadeiro
«Para a cidade do Imperador; para a Viena impe­rial; e diretamente ao imperador,», explicou Yerney. «Os homens não me reconheceram os meus direitos; os homens não me fizeram justiça — o Imperador fá-la-á em abundância.»
O estalajadeiro e a mulher trocaram sorrisos.
Yerney tirou as botas para aliviar os pés empolados. Ao sentar-se, idoso, pálido e curvado, com os dedos calejados, grosseiros e a tremer, parecia um homem com cem anos, inclinado sobre a sepultura.
«Trazei-me um pedaço de pão e um copo de vinho», pediu ele ao estalajadeiro. «Irei descansar aqui neste banco — amanhã cedo gostaria que tivessem a vossa carroça pronta para me levar à estação... pois estou tão velho e tão cansado também, que nunca conseguirei chegar a pé à cidade do Imperador; nunca conseguirei atravessar aque­las montanhas altas e aquelas planícies sem fim.»
Apressou-se a comer o pão, e depois, esticando-se no banco, adormeceu rapidamente, como se a sua própria alma se tivesse separado do corpo, e todo o pensamento se tivesse extinguido.
E, começou, então, o «Calvário» de Yerney.
Na manhã seguinte, quando acordou, o estalajadeiro atrelou o cavalo à carroça e conduziu-o a uma cidade desconhecida. Num albergue grande e quase vazio, Yerney esperou até ser chamado e depois embarcou numa carruagem de caminho de ferro. A carruagem era escura e cheirava mal, nos bancos iam desconhecidos que falavam muito alto e quase não o saudaram; olharam-no de soslaio como se não tivesse sido convidado e ocupasse o lugar de outra pessoa. Sentou-se discretamente na borda de um assento e colocou a trouxa sobre os joelhos. O comboio pôs-se em marcha de repente; um ruído das rodas, um chiar de travões; Yerney descobriu a cabeça e fez o sinal da cruz.
«Oh Deus», rezou ele, «abençoai a minha última caminhada. Nas Tuas mãos confio os meus direitos!»
«Para onde ides?» perguntou o vizinho de Yerney.
«Para Viena.»
Os companheiros de viagem olharam-no espantados, com as roupas muito usadas e empoeiradas, a trouxa em cima dos joelhos e as botas penduradas aos ombros.
«Que ides fazer a Viena?»
«Ver o imperador.»
Com esta resposta o espanto dos passageiros desapareceu e começaram a rir.
«Contai-nos a vossa história, vizinho, contai.»
E quando Yerney lhes contou a história dos seus direitos e da sua dolorosa jornada, todos riram com tanta vontade como se tivessem estado no espetáculo a assistir às brincadeiras dum palhaço.
«Não estou a cantar canções cómicas; não me estou a exibir a dançar», gritou Yerney com raiva: mas cada vez riam mais alto.
«Contai-nos, vizinho; contai-nos como ireis compor­tar-vos quando estiverdes na presença do Imperador. Que fareis, que direis? Contai-nos também: ajuda-nos a passar o tempo de maneira agradável.»
«Que gente sois? Onde nascestes? Donde viestes, vós que ris da justiça como se fosse uma mulher bêbada? Que Deus venerais, que vos atreveis a escarnecer das Suas leis?»
O divertimento dos passageiros aumentou e olharam para Yerney como se estivessem a admirar um bicho raro num espetáculo. O seu vizinho remexeu no bolso e tirou um frasco que ofereceu a Yerney.
«Bebei um golo de aguardente, homem, para que não vos canseis de falar, já que essas histórias são muito divertidas.»
Mas, Yerney nem aceitou, nem lhe respondeu.
«Que aconteceu? Que se passa com os homens no mundo?» pensou. «São os servos ou os joguetes da injustiça, uma vez que insultam a justiça e se riem dela? Sofreram assim tanto que o desespero encheu os seus corações e perderam a fé em Deus e nos Seus mandamentos? Riem de mim como se fosse em busca do País Encantado, e não da justiça que Deus nos enviou e que o Imperador representa.»
Os passageiros apeavam, outros entravam, e estes falavam outra língua, que Yerney não percebia. A noite caíra, e ao olhar para fora pelas janelas, viu o luar sobre uma paisagem estranha. De repente sentiu como que o chão se tivesse abatido debaixo dos seus pés; como se nada o segurasse; e o seu coração estava tomado por um medo estranho. Falou para o vizinho, um homem da cidade a avaliar pela roupa, que começara a dormitar num canto.
«A que distância estamos da cidade — da cidade imperial?» perguntou Yerney.
O homem abriu os olhos ensonados e olhou para Yerney, abanou a cabeça e aconchegou-se para o canto.
«Não compreende», pensou Yerney, «e mesmo que pudesse compreender as minhas palavras, não conseguiria compreender os meus sentimentos. Nem compreenderia a justiça, pois que há gente no mundo que tem outras leis e veneram outro Deus... Oh, Deus, Tu és o Deus da minha infância! Tende misericórdia de mim, pobre vagabundo, sedento da Tua justiça!»
Yerney tinha medo na sua solidão. Apertou as mãos nos joelhos e rezou, para fortalecer a sua confiança.
Viajou durante toda a noite. Estava tão fatigado que mal podia mover os braços ou as pernas; via com dificuldade; já não ouvia o ruído das rodas. Parecia tudo um pesadelo.
(Cavalo de Ferro Editores, 2004)



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